A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

sábado, fevereiro 28, 2015

ESTRADA DA RENOVAÇÃO



ESTRADA DA RENOVAÇÃO

Repouso e ouso,
E intento o ousio,
Se o hoje é formoso
No céu deste estio…

E incendeio nomeada,
Como um jeito gostoso,
De renovar a estrada.

J Maria Castanho

FLOR D'ENTARDECER



FLOR D’ENTARDECER

Pernoita-me o ser
Num leito fulgente,
Onde a lava a correr
É saudade de gente…

E ainda mais além
Dessa profunda cor
Aí me ateio também
Por tua sede em flor.

Pernoita-me o ser
Aceso docemente
Na flor d’entardecer
Como se fosse gente!


J Maria Castanho 

sexta-feira, fevereiro 27, 2015

DO CINISMO PREDADOR



DO CINISMO PREDADOR

Por cada inocente que acredita
Há um cínico que enriquece,
Que a vida não é nenhuma fita
Em que só de dá bem quem merece.

Gente confiada, à beira da desdita,
Que anda na árdua lida e esquece
Os sempre prontos a esticar a guita
Para que assim nela caia e tropece…

Gente que estima, como é estimada;
Que preza a família e a família preza;
Mas que por bobos se vê interpelada
Por não lhe terem dito «ámen» “à reza”.

Por cada inocente submissa e calada
Há (plo menos) um alarve que a despreza.


Joaquim Castanho

CUMPLICIDADE CRESCENTE



CUMPLICIDADE CRESCENTE

A tarde inventou a noite
Para poupar na luz…

Mas esta chamou a lua,
Deu-lhe um açoite,
Saiu a dançar prà rua
E… truz!


J Maria Castanho


quinta-feira, fevereiro 26, 2015

CUMPLICIDADE CRESCENTE




CUMPLICIDADE CRESCENTE

A tarde inventou a noite
Para poupar na luz…

Mas esta chamou a lua,
Deu-lhe um açoite,
Saiu a dançar prà rua
E… truz!


J Maria Castanho

HORIZONTE ADIANTE




HORIZONTE ADIANTE

Nas ondas das vozes que inspiram as nuvens
Voa essa luz que a alma aspergiu de carinho,
Que adoça e dignifica idosos, adultos e jovens
Com pétalas de algodão em flor e rosmaninho…


São brancas e são violetas… São tudo e cintilam
E gizam no azul os sonhos de mulheres e homens;
E dão-lhes seus dias e suas noites quando brilham.

J Maria Castanho

ÉTICA COMERCIAL E CONCORRÊNCIA




ÉTICA COMERCIAL E CONCORRÊNCIA

Pagar para aturar palhaços
É pacóvia asneira e sandice,
Que “mercearias” deviam ser espaços
Onde o respeito ao comércio se visse.

Pagar para aturar estafermos
É coisa que não está com nada,
Que o vender, faz-se com termos
Ou muda-se o povo de “estrada”.

JOAQUIM CASTANHO

quarta-feira, fevereiro 25, 2015

O QUARTO CIGARRO



O QUARTO CIGARRO

Por
                                     Joaquim Castanho



Por hábito, ou por vício – que o quotidiano é composto de rotinas –, a hora da bica tornou-se uma referência quase mítica à minha maneira de estar em cada dia. Tanto pelo que novo, às vezes conseguia acrescentar; como pela ausência de novidades. E, porque aquilo que ontem foi variante à força de repetir-se se transformou em constante, saciando a neofilia, “assimilar desconhecidos”, pela frequência dos encontros, em conhecidos, tornou-se irrelevante quanto ao facto de estar presente.
Dito e feito.
Assim, o silencioso mistério que o aparecimento de Inês provocou, desvaneceu-se, e deixou em seu lugar a tranquilidade duma presença inequívoca e familiar. O rosto angular miúdo esquadrilhado pelo negro cabelo curto, arrapazado, servindo de suporte ao olhar sereno das pupilas pretas, acutilantes e inteligentes, transmitindo passividade observativa, veio ganhando desnitidez para operar-se em mais um rosto irrelevante entre outros tantos de igual e indiferente relevância. Quando presente era legendado em off de consciência pelo ecoar interior de um “cá está”; e, se ausente, por um outro a que se apunha um laçarote negativo de “não está cá”, alterando a ordem dos significados e significantes para produzir a diferença, pois que é isso acima de tudo que está em causa sempre que pensamos em alguém, ou que alguém nos começa a transmitir algo mais com a sua presença ou ausência do que a noção exacta e factual do que elas significam. É quando começamos a ouvir ecos e vozes sinistras, em off. O off do desejo; ou o off da atracção. O off da prudência; ou o off da aventura. O off da esperança; ou o off do medo.
Falar da personalidade de Inês é falar dum corpo de menina com a mentalidade de uma mulher de trinta anos. De estatura baixa, entre o metro e cinquenta e o metro e sessenta, sem ser magra nem gorda, mas polida de arestas, movimenta-se assentando meticulosamente primeiro o calcanhar no chão, aparentando mais um deslizar do que um caminhar a dois pés. E no vestuário, sempre de calças, em ganga ou bombazina castanha ou cinza, inconfundível e alternadamente castanhas ou cinza, a preocupação de resguardar o corpo da sevícia dos olhares, principalmente o tronco e os seios pequenos e gomosos, por uma sequência de camisolas ou camisas abotoadas até ao pescoço, em cores discretas, mas sempre a condizer com a demais indumentária.
Bonita? Se não achasse que sim, nem estaria a falar nela.
Contudo, não nos dispersemos.
Ao sentar-me diariamente à mesa do café, entre a bica e a terceira página de leitura do livro que incondicionalmente me acompanha, ela chegava. Sentava-se sozinha, fumando um cigarro antes do café, outro depois dele, e, passado pouco tempo, após duas ou três goladas no copo de água, um terceiro – e último. Todos os dias. Invariavelmente. Exceto aos sábados, em que não vinha à noite, mas sim à tarde, logo a seguir ao almoço e até um nadinha antes do jantar.
Falar... Tão-só o essencial. “Boa tarde” ou “boa noite” à empregada, que, devido à constância da receita nem sequer lhe perguntava o que queria; ou algum “com licença” se entrando para sentar-se ou levantando-se para sair, acontecia invadir o espaço de outro cliente. Nunca a vi rir; apenas sorrir, e raramente. Uma única vez, quase, que não cabe dizer agora aqui. Mas também me não lembro de a ter visto triste e melancólica. Ou aparentemente triste. O seu semblante era o desenho, a máscara perfeita, numa plástica de serenidade completa e satisfeita.
A vida é um off infinito interrompido milhentas vezes, até à perpetuidade.
E nós, exímios ases do disfarce e simulação, da camuflagem, nem sempre conseguimos a contenção suficiente para não deixar transparecer nos nossos rostos e comportamentos, os sentimentos e ideias que no imo evoluem, os offs ditados e sublinhados por esse constante e secreto diálogo interior, que mais não é do que a apólice de garantia por estarmos vivos. Daí que, durante esse ano e tal de presença assídua, em diária e subtil insinuação, tímida, silenciosa, impercetível, mas inequívoca, Inês tenha sido o polo aferente, o núcleo duro, à volta do qual giraram, umas vezes mais tranquilos, outras mais sobressaltados, uma miríade de offs satelitizados.
Tanto assim que, ao chegar, ou logo que chegasse, antes mesmo que a tivesse visto ou ouvido, ainda que o café estivesse a abarrotar e o som da televisão num volume fora do comum, cujos ruídos se impusessem e me solicitassem a atenção, eu aperceber-me-ia e saberia da sua entrada, numa constatação indubitável, e tão vincadamente certa, ou até mais certa do que se a estivesse realmente a ver e ouvir, quando nem estivesse nesse momento a fixar a porta.
Não digo que o desejar vê-la funcionasse como um chamamento para a sua aparição, como se fosse a efetiva materialização duma invocação, nem que a coincidência do espaço-quando entre o aperceber-me da sua chegada e o ela chegar, tivesse relevância ou fosse sintomático de tendências para o misticismo, para o reconhecimento mágico, da minha parte. Mas acontecia. Fatal e irremediavelmente. Sem que ao menos tivesse consciência disso. O “cá está” em off soava, e eu levantava os olhos do livro, em soslaio para a porta, e lá estava ela a entrar. Sempre. Sempre. Sempre. Sempre.
É esse diálogo em off que nos mantém ímpares, expectantes e sobreviventes. Sem ele, a solidão nada teria de aventureiro e fantástico, mas sim de mortífero e doentio. Senão de desumano, até. De monstruoso. Reconhecer que Inês tinha aparecido nesse dia dois minutos mais cedo do que o habitual, era uma vitória proustiana; dois minutos mais tarde, uma catástrofe e uma calamidade. Dois minutos que podiam ter o efeito de um obus. Ou de um fogo-de-artifício maravilhoso e sublime. E, afinal, dois minutos que em vinte e quatro horas, nada mais são do que a milésima parte do dia. Mas que eram sem sombra de dúvida, um reconhecimento intensamente sentido por essa brecha da alma em carne viva, que é a certeza de resistirmos sempre muito para além dos limites.
Adriana, provavelmente, não veria as coisas de idêntica forma... (Ou será que via?...) E paradoxalmente, na sua passividade, era a cavilha, a espoleta, o fulminante, o rastilho, para o fogo e atividade em que me ardia a existência, numa cozedura de furna vulcânica. Num consumir impercetível.
Eu lia. Mas que ninguém me inquira sobre o que estava escrito nessas três ou quatro páginas que duravam a sua presença. Ainda que tivessem sido sempre as mesmas. Repetidas quinhentas e tal vezes. Que eu não saberia honesta e sinceramente responder; a não ser que inventasse. Ou se no café também estavam fulano ou sicrano. Seria igual. Branco sobre branco.



Até que um dia, faz hoje precisamente dois anos, não dei por mim a reconhecer a sua entrada; todavia, ao erguer os olhos do livro, para a frente, ela estava a puxar a cadeira da minha mesa, e a sentar-se nela. Fronteira a mim, à exata distância de um tampo de mármore, de uma mesa, qual tumba branca e fria, a separar-nos. E senti que dentro de mim se rebentara um saco de águas, uma borbulha de soro vital, que se alastrava por todo o corpo, até ao mais ínfimo e recôndito pormenor, exalando, transpirando, emitindo, uma profusa sensação de calma e tranquilidade. Que, aliás, se repetiu, embora perdendo gradualmente a intensidade, nos dois ou três meses que se lhe seguiram. E em que a sua presença à minha mesa ganhou foros de dado adquirido e conquista irrevogável.
E assim foi, até ao ano passado, todos os dias. Todos. Todos. Todos. Todos.
Sentava-se. Fumava um cigarro. Chegava o café, e adoçava-o; então, bebia-o serenamente, em três goladas precisas e rigorosas. Fumava novo cigarro. Dava dois ou três golos no copo de água (não tão precisos, mas não menos exatos). Fumava outro cigarro; e partia.
Todos os dias o mesmo ritual. Inconfundível e inalterável.
Entretanto, eu lia. Mas não lia. Mentalmente perseguia-lhe cada gesto, adivinhando-o antes de acontecer.
“Sentava-se. Fumava um cigarro. Adoçava o café e bebia-o. Fumava outro cigarro. Dessedentava-se. O terceiro cigarro; e saía.”
Na minha frente os gestos aconteciam imediatos e reais. Mas eu revia-os em replay, saboreando-os gulosamente. E se calhava levantar os olhos do papel era para fazer a sobreposição do fotograma sobre o instante real, e reconhecer que não havia qualquer disjunção, qualquer desvio, qualquer assimetria. Que a cópia e o original se encaixavam perfeitamente. O que sempre sucedeu durante um ano, como já afirmei.
Em dois anos consecutivos somente houve uma alteração, com um ano de antes e outro de depois dela: O quarto cigarro. Após um ano ininterrupto a sentar-se, fumar o primeiro cigarro, beber o café, fumar o segundo cigarro, beber água e fumar o terceiro cigarro, para seguidamente se levantar e sair, passou a sentar-se, fumar o primeiro cigarro, beber o café, fumar o segundo, beber água, fumar o terceiro, beber novamente água e fumar o quarto cigarro, para partir consumido este, no decurso do ano seguinte. Nem mais. Ou menos. Exata e exemplarmente assim.
Mas essa alteração, menor, como afinal o foram antes desse ano os dois minutos de antecipação ou de atraso, arrastou-me para um turbilhão de sentimentos e ideias e dúvidas e contradições, inconcebível. Para uma tempestade interior de onde tinha que sair a nado e a pulso, sem qualquer suporte ou auxílio, em solidão total, esforçada e exaustivamente conseguida. Respirar era uma batalha. Perceber que continuava vivo depois dela ter partido, uma vitória. Nunca a minha vida valeu tanto, nem tão pouco!
Talvez seja a este prazer de torturado que alguns autores aludem, em suas obras de personagens ou temáticas sadomasoquistas; ou esse contentamento descontente dos poetas. Não sei. Contudo, se cada dia tivesse mais um ou dois segundos dessa parca meia hora em que ela permanecia na minha mesa, tenho a certeza de que morreria. Sucumbiria, fulminado. Naufragaria. Indubitavelmente, sem esperança nem recurso. O Inferno de Dante parece uma piada ridícula e idiota face àqueles trinta e tal minutos. Acreditem.
Há pessoas que são capazes de se matar pelos outros. Há mortes e suicídios por amor. Nem era estritamente necessário que alguns shakespearianos no-lo tivessem lembrado em literatura, para que o soubéssemos e reconhecêssemos. Outros, de morrer. E eu, convencido que estava, e estou!, que se Inês ficasse alguma vez mais esses fatídicos minutos, por cada dia, eu morreria... Mesmo assim, chegava a desejá-los. Não percebem?... Não importa; eu também não – embora seja a mais pura das verdades.
Todos os dias, ela vinha e sentava-se; e eu restava ali, abatido, prostrado, naufragando sem debate, nesse remoinho tempestuoso de milhares de offs e pesadelos alucinados, aflições, letargias e expetativas. Irremediavelmente só, até aos infinitos limites de eu próprio, invocando religiosamente a pírrica frase por cada vitória de cada dia a que sobrevivia. Trezentos e sessenta e seis dias escritos por extenso e em brasa na página mais secreta do meu ser.



Mas valeu a pena, meus amigos. Porque hoje, inconfundivelmente hoje, precisamente um pouco antes, um nadinha quase nada, da primeira página destas linhas, ela concedeu-me esse minuto em que residia o limiar da minha resistência. O derradeiro. O fatal. O fatalíssimo, em érrimo grau.
            E eu, em desespero, ansioso, febril, seguramente convicto de que iria morrer na sequência dele, consequentemente, ergui os olhos para os dela, implorante e grato, acabado, vencido, a fim de lhe ouvir dizer, sorrindo em condescendência e num lamentoso oscilar de cabeça:
«Tonto!... Claro que te amo. Ou achas que se não te amasse eu teria fumado mais um cigarro, por cada dia e durante um ano?! Por cada bica?... Aumentando assim as minhas possibilidades de cancro, hãn?!... Tonto!»

          E saiu. Reportando-me a existência para uma arte bastante estranha de entender as coisas e a vida. Mas ficara convencido: ninguém, em seu perfeito juízo, se destrói por nós, se nos não ama verdadeiramente, seja lá o que isso for da verdade e do amor... Ninguém!                     

ABAIXO A PÁGINA EM BRANCO




ABAIXO A PÁGINA EM BRANCO

Há que fazer a folha
Ao palhaço branco
Dita o verbo da razão,
Que quem te escolha
E escolhe a negação
Só merece o barranco.

Há que fazer a espera
Aos estigmas racistas
Que os demais ofendem,
Porque esta ecosfera
É biodiversa e contém
Nossas culturas mistas.

Há que ler o capítulo
Que esclarece as vistas
A quem põe a ridículo
Todos poetas e artistas.

J Maria Castanho

terça-feira, fevereiro 24, 2015

DA INSEGURA SEGURANÇA DO AMOR




DA INSEGURA SEGURANÇA DO AMOR

Amar não é fácil para ninguém,
E, muito menos, coisa para amadores;
Que após ausência, a saudade vem
Plantar incertezas, ânsias e dores.
Amar é difícil, e se o fazemos bem,
Ou com jeito cuidamos de nossas flores,
Não raro vem a falta de jeito de alguém
Fazer (re)florir novas plantas e cores.

Amar é um (des)andar na corda bamba
Contínuo, ou por tudo, e até por nada;
Que mesmo que se a alma ginga e samba
Logo o corpo entra em outra roubada.
Amar dá arrepios, securas, rubores,
E exige engenho e arte aos amadores.  


J Maria Castanho

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

ORAÇÃO




ORAÇÃO

Hoje, sobre ti a Lua-Nova abre
O seu cálice de ouro e sigilo,
Quase copo de adaga ou sabre
Afiado gume e gélido brilho.
É cálice de renascida intenção
A transbordar sombra de lado,
Onde cabe humana condição
Tecida esperança e tido eito
Do verbo quer ser conjugado.
Nada me digo. Ponho as mãos
E cerro os olhos com respeito
Ante teu sonho assim desejado,
E à noite abro todo meu peito
Pra que nele seja enfim tatuado.
Ponho as mãos, mas o coração
Esse, fica sempre do teu lado.


J Maria Castanho   

O CARNAVAL CONTINUA, QUE A VIDA É QUE SÃO SÓ DOIS DIAS



O CARNAVAL CONTINUA, QUE A VIDA É QUE SÓ SÃO DOIS DIAS

Pouco pode quem manda
Pois já nada lhe diz respeito
Num país que, em vez de andar, desanda,
E onde o governar é do mesmo jeito.

Impostos… Só paga quem não consegue fugir.
Garantias… Só as que o tem-que-ser dita.
Liberdade… só se for a de mentir,
Que quem não sabe fazer é perito em estorvar.

Porém, se o défice geme e a balança apita,
Ei-los pimpões e repimpados a palpitar diagnósticos na TV…
Ou a desfilar em belos carrões – que pagaram…? Qual o quê! 


J Maria Castanho

MODINHA PARA TACÃO E BICO



MODINHA PARA TACÃO E BICO

Se esse lixo que dita a gesta
É quem nos lixa a sorte e vida,
Então nada mais nos resta
Senão dar-lhe pontapé de saída.

Ler-lhe a sina escrita à mão
Pregando-os na cruz do boletim,
Que o voto é única ação
Pra quem não quer continuar assim.

Que dos dois países que há
(O das estatísticas e o real)
Nenhum serve para quem vá
Mourejando duro – e ganhando mal.


J Maria Castanho  

domingo, fevereiro 22, 2015

GAIATO RODOPIAR


 
 
GAIATO RODOPIAR

 

Porque se a terra não é só de ouro,

Ainda que seja matéria preciosa

E sustente o instante duradouro,

É quem gira à volta da luz, e o glosa.

 

É o íman cósmico; mas é profundo.

Gaia ciência; e também magia.

Ocre de pintar verde sonho no mundo

Com a leda graça, esplendor, alegria,

Do oxigénio feito vento numa dança.

 

Que puxa e afasta, é botão, e é rosa;

É cova de morte ou seara d’esperança;

É empréstimo de poesia à prosa;

E sobretudo é rodopio de criança

Que gira à volta do sol…  e o glosa!

 

J Maria Castanho

ÂNIMO E REALISMO



ÂNIMO E REALISMO

Sob as ordens de teus olhos iniciado
Meu querer só tem um crer consecutivo:
Cumprir toda existência do teu lado
E ser da vida servo feliz e cativo.

De estar nela, sendo dela, porém só teu;
Ter por norma a sublimada convicção
De preferir a certeza que de nós nasceu
À fama próspera e livre da solidão.

De respeitar teus desejos, atitudes,
E vê-los de mim próprio, naturais;
Ou saber que os defeitos são virtudes,
Logo que vistos doutros pontos cardeais.


J Maria Castanho

sábado, fevereiro 21, 2015

ORAÇÃO



ORAÇÃO

Hoje, sobre ti a Lua-Nova abre
O seu cálice de ouro e sigilo,
Quase copo de adaga ou sabre
Afiado gume e gélido brilho.
É cálice de renascida intenção
A transbordar sombra de lado,
Onde cabe humana condição
Tecida esperança e tido eito
Do verbo quer ser conjugado.
Nada me digo. Ponho as mãos
E cerro os olhos com respeito
Ante teu sonho assim desejado,
E à noite abro todo meu peito
Pra que nele seja enfim tatuado.
Ponho as mãos, mas o coração
Esse, fica sempre do teu lado.


J Maria Castanho   

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

A TRAGÉDIA


A  TRAGÉDIA

 Por
JOAQUIM CASTANHO

 

Juvêncio Pernas nunca foi homem de falas desperdiçadas, nem palavras sabidas em ró-có-cós e caganeirices. Mas deu-lhe a vida, por mor de muita andança e surpresas várias, aquele semblante desconfiado e o cenho franzido de olhar os outros sob a pala do boné de bombazina castanha, que só tirava para dormir, e as mais das vezes nem para isso, pondo-o sobre a fronte, se de alguma sesta à sombra de árvore mais frondosa o calor e cansaço lhe impunham. As pressas o não impediam. E à companha dava jeito.

Nado e curtido nas charnecas de outrora, nunca se adaptara solidamente às sociedades que a longevidade lhe fez atravessar: na de produção negou-se à prisão condicional dum emprego fixo e horário rígido; à de consumo, recusou a corrida sem tempo de olhar os campos, as aves, os riachos e os arvoredos; e tão-só da de comunicação quis aproveitar mais do que alguma musiquinha brejeira nas noites de sábado em rádio portátil. E ao mundo, queria-o pequeno, para que lhe pudesse dar a volta num dia, de cão coelheiro preso ao eixo da carroça puxada pela arisca e finória “Boneca”, uma mula e tanto, picaça, que ainda prometia muitos e aturados anos de atafais. Em toda a vida tivera quatro para a lida, mas aquela era de todas a que mais lhe enchera as medidas, pelo porte fino, esguio, nervoso temperamento e maneiras de madame exigente nos mimos e no trato. Altiva, que nem uma soberana; folgazona e lesta, que nem uma alvéloa. Assustadiça, porém, se não se tivesse mão nela e uma palavra de acalmia. 

Por ganha-pão agarrara-se vida fora ao ferro-velho. Essas azinhagas e carreteiras foram-lhe o chão da casa, e por piores que estivessem os seus pisos, desde que lhe cheirasse a ferrugem nalgum casal ou monte de confins, nunca lhe impossibilitaram de fechar negócio. Um faro danado que detetava os oxidados a milhas, e nos olhos de medir a disposição do vendedor, sem dúvidas nem lambanças, uma acuidade e concentração que assustaria os psicólogos mais expeditos, forjaram-lhe sério e avultado pecúlio, que deixou a forrar juros de ano para ano, sem precisão de mexidas por doenças e desafortunas.

O casamento durara-lhe e tivera na vida dele o mesmo desassombro de uma trovoada de Abril, morrendo-lhe a companheira na primeira prenhez, levando com ela a cria, que nem do tempo era. Coisas que um homem não desmisterializa, nem a natureza concede desvendação. Bastando-lhe a experiência, não sem antes afogar as mágoas, frequentando intervaladamente algumas casas menos religiosas, mas mais iniciáticas, embora que doutros credos e catecismos.

Foi à tropa quando devia ter ido e não ganhou nem perdeu nada com isso. Se anteriormente, por trabalhar, era mal pago e pior considerado, quando lá, continuaram a pagar-lhe mal, trabalhou de igual modo e a consideração também não subiu. Infantaria, escolhera ele, por ser um nome pomposo e de realeza, que deveras o fascinou e o seduziu: meteram-no a limpar cavalariças e tratar de cavalos.

Aprendeu o negócio com um tio que o explorou de sol a sol, e que o empregou por extraordinário favor familiar, materno, por imploração da mãe, e a quem haviam nascido os dentes no ofício. Três anos, foi quanto durou o idílio!... Um dia, pelo S. Martinho, atirou com os aparelhos ao ar e mandou os favores do tio pràs urtigas, que era de onde nunca deviam ter saído! Estabeleceu-se com três contos de réis, a que foi acrescentando outros, somando aos três de cada vez, até que, ao casar possuía de seu o albergue e a viatura. O primeiro muar foi a meias com um comerciante de gado, que lhe aproveitou as voltas para fazer propaganda à mercadoria. Não fora grande coiseca, mas vendeu-se com lucro para os dois, a um vinicultor a quem dava bastante jeito, pela moleza e obediência, únicas qualidades que evidenciara em dois anos de trato.

Quis o destino que, na sexta-feira santa de l990, às seis da tarde, lhe fosse a sorte arredia na desfeitura do produto de sessenta e dois anos, bem conservados e nutridos, sem moléstia de maior, num molho de ossos quebrados, além de umas dores danadas, que por certo, nem às parideiras era dado ter, se não, nem no mundo haveria geração.

Andara durante o dia pelas bandas de A-dos-Tansos, zona encarapelada de morros e vales, alguns a pique, deixando ravinas de alto lá com elas!... E ao fundo das quais, o Rio Tramóia, que na sua terra, Casal Parado, mal passava dum ribeirote, mas que para os sítios, engrossado por uns quantos riachos e ribeiras, de fracos recursos em pleno Verão, corriam à data sem descaro nem licença para dentro dele. E, em determinados locais, se o declive o propiciava, em cascatas espumosas de água pardacenta dos esgotos e pecuárias que lhe desaguavam.

O caso dera-se sem apelo, não obstante as suas destras mãos na exímia condução da Boneca, tivessem recorrido a toda a mestria acumulada nos ininterruptos e idos anos de domar os ânimos e desquites às alimárias do seu sustento. A estrada serpenteava encaracolando-se à volta do morro, dando-lhe pela esquerda frondosa mas pedregosa fasquia, e pela direita, inclinado precipício, esgalhado à mão podoa, de piornos, xaras, carapetos e zambujeiros, entremeados de morouços de pedras e menires naturais que aos celtas da zona não ofereceram qualquer utilidade. 

«Ah, mundo cangalheiro!...» Responsava consigo próprio, num resmungo de medir-lhe os cômoros e declives, contabilizando os espécimes da flora até ao rio, no fundo, a borbulhar cachões. «Arre, que até arrepias!!...»

E impressionava mesmo. Dava vertigem, a quem se debruçasse da estrada para lhe espiar o leito, sumido as mais das vezes, encoberto pela vegetação.

De santa a sexta-feira não tinha tido nada, prò negócio. Umas aduelas, relhas partidas, duas camas de ferro carcomidas de ferrugem e uns quilos de arames vários, fora quanto abichara. Mas pronto!, para a broa sempre havia de dar... Sem conduto, é claro, que as carnes não se mercam com ninharias!...


Cogitava nas contas do que reunira semana fora, em termos de remessa, visto que no dia seguinte, sábado, era dia do camião da metalúrgica, que lhe ficava com os pesos, passar pelo estaleiro a carregar. Feitas por alto, não excediam as três toneladas – o que era pouquíssimo!... Noutros tempos, chegara a juntar sessenta e setenta de sábado a sábado. Mas os costumes mudaram-se, e o ferro da lavoura, que fora do que mais lhe viera parar ao lastro da carroça, sucedera substituído nos tratores e demais alfaias sem propensão para metal, ainda velho que fosse.

A estrada é apertada, mal permitindo passagem, no cruzar-se, a dois carros. E nas ultrapassagens via-se obrigado a entrar com o rodado no piso de chão da valeta, a facilitar a manobra aos outros viaturantes. Apercebeu-se perfeitamente da natureza e porte do veículo que se aproximava pela retaguarda. “Um pesado de grande curso”, pensara ele.

E era. Nada mais que um TIR, transporte longo e de manobra difícil, de assustadora envergadura, no seu comprimento de doze rodados. Mas o motorista, cruelmente brincalhão, sobremaneira o quis ultrapassar, fazendo da buzina de ar um instrumento de tortura para os serôdios do progresso, mandando-lhe duas estrondosas bufadelas no cachaço, ecoantes de estrépito civilizacional nos orelhões do muar. Bbbrrrhhhuuummm!!... Bbbrrrhhhuuummm!!...

Resultado: o bicho embraviscou-se, deu dois cangotes, entrando em pânico pelo alvoroço, desobedecendo ao arreatar do freio e serrilha, investindo-se de teimosia bárbara e diabólica, levando o rodado da carroça a saltar a valeta, que, num ápice se resvalou – zás, pás, catrapás, pás, zás – precipício abaixo aos trancos e tamancos, de cangalhas às avessas, num pandemónio que dificilmente ao sarraceno lembraria. E o energúmeno nem parou, ainda assim o não chamassem a contas pela brincadeira!...

Porém, não eram decorridos dez minutos após o desacato, quando um residente daqueles ermos, dirigindo-se a casa, vindo do trabalho, na sua motorizada de 50 cc, apercebendo-se do desastre parou a traquitana e constatou nada poder fazer além de ir a casa telefonar para a GNR e Bombeiros Voluntários de Casal Parado. Que foi o que fez, à ligeireza do enquanto o diabo esfrega um olho imposto na distância.

Os primeiros a acorrer ao local foram os Gê Nê Rê, nas pessoas do cabo e dois praças, que, pé ante pé, e à custa do pretexto da demora dos soldados da machadinha, desceram a ravina.

O tio Juvêncio Pernas fora o que caíra mais longe, esgalhando piornos e xaras, até se quedar, de braço direito e clavícula esquerda partidos, as costelas a multiplicarem-se em duas por cada uma, tíbia e perónio esquerdos em fratura exposta, e duas brechas no toutiço em que cabiam à vontadinha dois patacos de Euro, no arejar-lhe do cérebro por um par de vinténs. Antes dele ficara a besta – salvo seja, que se no desaguisado alguma houvera, fora outrossim o fitipaldi dos camiões –, de espinha partida em dois lados, escoriações na cabeça, e a pata dianteira esquerda quebrada em duas secções. E na superior da superfície, acamarotado de primeira, o canzote coelheiro, que inúmeros laparotos lhe havia trazido à mão, se acaso o soltava onde visse que era chão deles e sem perigar de ser autuado pela venatória, com o pescoço traçado pelo cordel que o prendia ao eixo da carroça, sustendo a cabeça ao corpo por um fio de carne e pele, patas traseiras partidas ambas e outras feridas menores. O resto da carroçaria e carga, foram parar espalhadas encosta adiante, conforme o peso e os obstáculos.

Ao GNR, o cabo Sabino quanto apurei, deparou-se primeiro com o cão. Meteu-lhe dó o animal, naquele estado, ganindo e gemendo de cortar a alma às postas de meio arrátel. Sacou da pistola, e não esteve com demasias: assestou-lhe um tiro de misericórdia, acabando-lhe de vez com o sofrimento.

Encontrou seguidamente a mula Boneca, cujo estado de graça não era para menos, e processou-lhe igual tratamento. Pum!!, mesmo de cano enfiado no interior da orelha do bicho.

Finalmente deparou com o tio Juvêncio Pernas, escarranchado num carapeteiro, que crescera aprumado sobre um desabrido morouço de calhaus, ainda com a arma em mãos das anteriores utilizações. Este visionou o guarda, o cinzento pardo da farda a aproximar-se, e logo que o teve perto de si, esboçou um sorriso de quem estava num dos melhores sofás do salão de chá, e afiançou-lhe:

«Oh, Sr. guarda: tal foi a tragédia!... E eu, nem um arranhãozinho apanhei!!?»