AS TRÊS LIBRAS EM OURO
Por Joaquim Castanho
«Naquele tempo,
Portalegre, era bastante diferente do que hoje é, e à sua volta, mais não havia
do que matas, silvados e charnecas, onde vulgarmente se acoitavam também
foragidos, salteadores e demais indesejáveis ou marginais. Os soutos e carrascais
competiam livremente entre si, sendo utilizados pelos habitantes para caçarem,
recolherem lenha para uso doméstico e fornos de carvão, madeira para a construção
de cómodos e habitações, frutos silvestres e alguma vegetação mais tenra para
alimentarem animais. Eram igualmente visíveis algumas manchas florestais de
sobreiros, azinheiras, castanheiros e carvalhos, embora estas tivessem já a
marca da orientação explícita de recursos económicos dos senhores de terras,
que as exploravam sem grande exigência de pormenor para montarias, montados,
combustível e fabrico de carvão vegetal. Porém, aos aldeões e populares essa valia
de muito pouco ou nada servia. Os tempos eram outros e os costumes também. Incluindo
as relações sociais ou de convivência entre proprietários e despossuídos de
território.
As raparigas e rapazes
dos arredores, logo que atingiam tamanho e força para serem de algum préstimo –
o trabalho da criança é pouco, mas quem
não o aproveita é louco, conforme rezava o rifão –, começavam a ganhar o
seu sustento servindo "a de comer" nas propriedades onde nasceram ou
a que seus pais estavam adstritos, jornadeando desde que o sol nascia até que o
sol se punha. Os mais expeditos e as mais expeditas ficavam sob o comando direto
dos senhores, enquanto os lerdos e inadaptados de seus capatazes e encarregados,
onde os tratos de polé se não faziam rogados. A barriga era mal pensada e o de
sol-a-sol se iniciava de madrugada para findar noite feita. Se morriam novos ninguém
os lamentava, antes pelo contrário, se dizia um alívio por menos uma boca a
sustentar. Fizessem o que fizessem, nunca valiam o pão que comiam, como
costumavam dizer os populares.
O pensamento mágico era,
pois, mais professado do que é hoje o pensamento lógico, não obstante as bastas
licenciaturas e prolíferos doutoramentos que grassam por aí. Ninguém se formava
em nada e se, por ventura, alguém fugia à mediania, tinha à perna tanto
senhores como iguais. O obscurantismo e preconceito estavam tão fortemente alicerçados,
que as suas raízes ainda hoje vão reverdecendo aqui e ali, onde o "chão mental"
lhe facilita a cultura e cultivo. Pouca gente vai além do saber fazer com
respetivo e consequente saber aprender ou saber ensinar, e saber ser como saber
estar são coisas dispensáveis, senão mesmo consideradas afetações de
inadaptados e quejandos. Ter por ter que seja um carro topo de gama, nunca
princípios, saberes e valores que frutificam e proliferam de estaca, o que não
convém absolutamente a qualquer governo, sobretudo dos que pensam que as leis democráticas
se esgotam na Constituição, e mesmo essas são para serem bonitinhas e inglês
ver, e jamais para cumprir.»
Eu
mal respirava, temendo que se o fizesse, Maria da Penha, senhora expedita e
lúcida, cuja vivacidade melhor retratava uma jovem de 18 anos do que alguém com
os 88 que deveras tinha – e tem –, se calasse ou invertesse o tom à narrativa.
Qual ornitologista em observação de espécie exótica e rara, atento e em
suspensão, preocupava-me em não perder o mínimo som, o menor gesto, qualquer
pestanejar ou sustenido que emitisse. Todas as coisas ditas foram preditas
também. A expressão acompanhou-as como um sublinhado detetável mas invisível.
Dizem que muito pouco há da realidade que não tenha sido realidade já, e eu
acredito. Que não há auroras sem alicerces nos outroras... Umas no passado
próximo, como é óbvio, porém outras nos outroras mais remotos e profundos da
humanidade, a que a poeira do esquecimento, camada sobre camada, foi alterando
as formas exteriores, os contornos visíveis por notáveis ou não, pelo seu
inverso.
E continuou: «Os homens
e mulheres de um país, de um território qualquer, seja ele de agora como da
profundidade remota dos tempos, descavam a sua sepultura à medida que avançam,
edificam, constróem, se disseminam noutros tempos e noutras gentes – como
afirmou o poeta, "se vão da lei da
morte libertando" –, com ou sem o exercício propósito de o fazerem, é
verdade!, ramificando-se por palavras e adventos, criando e recriando continuamente
os seus modos de ser e de pensar, sem um lamento, e as mais da vezes, reconhecendo,
mal comparado seja, como se não tivessem nascido para outra coisa. E infiéis,
ou bárbaros, são apenas os que acreditam (no contrário). Sobretudo as raparigas...
As filhas dos rendeiros e súbditos vassalos desse alguém cujo algo os abarcava
e incluía. Sim, que a essas estava vedado serem bonitas e namoradeiras, ou
apenas apresentáveis e desenxovalhadas, uma vez que sendo-o, sem dúvida
despertariam a líbido de seus "donos" ou os filhos destes, se novos
por que insaciáveis, se velhos por que o verde ramo lhes renova o viço, pelo
que, indubitavelmente, todas as que ansiavam preservar-se donzelas e puras para
o seu conversado, perspetivando a prometida união, só muito encobertas e
andrajosas poderiam aparecer em público, e mesmo assim correndo o risco de
acicatar invejas, fantasias e cobiças, a que não correspondiam, claro está, mas
que quem as considerava suas por nascimento e direito proprietário, quais crias
de seus rebanhos ou manadas, instava em usufruir.»
O seu tom, era calmo,
embora desembaraçado, mantendo o deslizar fluvial da corrente espraiada dum rio
que não tem pressa de alcançar a foz, desenrolando-se como uma velha ladainha
esmaecida pelas inúmeras repetições que tivera, invocando aqui e ali preitos
antigos, mas sem a acérrima envolvência duma engajada, antes como quem apenas
sopra nas cinzas para avivar as memórias que o tempo nunca apagou
definitivamente, dar vida às palavras que já teriam sido mais que isso, talvez
motivação e ferramentas, objetos sonoros de arremesso ao oceano de consciências
amorfas com que o tempo vai engrossando as águas do esquecimento.
«Desde a extinção do
sistema matriarcal, que aqui imperou durante milénios, que quem não tinha de
seu, nada era. E quem tinha, de algum lado lhe viera, à semelhança do que ainda
hoje afirma o povo ao referir que "quem
cabritos vende, e cabras não tem, de algum lado lhe vêm", pois do
trabalho ninguém enrica, sobretudo não sendo remunerado como então não seria, mas
antes um cumprir sina que um amealhar, e, salvo raras exceções que, por recompensa
de dedicações ou cobrança de favores prestados, conseguiram ter coisa terrena
de pertença, uma vez que, todos e todas, não sendo escravos e escravas também
não eram livres, ou sendo livres mais não seriam do que escravos e escravas com
licença para circular e obedecer, tal e qual como Ana e Joaquim, exatamente
esses dois de que passo a falar-te de seguida com maior e particular atenção.
Joaquim era pastor como
seu pai, e seu avô já o fora, e até mesmo sua mãe e a mãe de sua mãe já o
teriam sido, nas terras de seu senhor, lá para as bandas dos Mártires, como
posteriormente vieram a chamar-se esses sítios; e Ana, criada ao serviço da
senhora de seu senhor igualmente, mas sob sua inequívoca proteção, porque
pertença sua, claro está, cujos pastos iam daqui a Alegrete, mas ele, todavia,
mais dado e atreito aos benefícios do convívio e à cidadania, dos confortos
cortesãos e paleio palaciano, preferia ter a sede no castro que mais tarde veio
dar origem à nossa cidade. Ela era moça que não teria mais de 15/16 anos de
idade, embora já desde os 12/13 tivesse o tino e corpo de uma mulher feita,
como quase todas as raparigas daqueles tempos, sobretudo aquelas que tendo
escapado às agruras dos maus-tratos, fome, doença ou trabalhos pesados demais
prà estatura, a essa idade aportavam; ele andaria pelos 17/18, mais coisa menos
coisa, curtidos desde a alcofa atrás do gado, por isso mesmo sortido e
sustentado dele, quer no leite e queijos, como nalguma carne se a ocasião o
propiciava, como também do muito que de comestível há por esses campos fora,
frutos silvestres ou cogumelos, espargos e raízes, ervas e rebentos, que bastos
são com o dito préstimo, não obstante muitos tenham sido irradiados da nossa
dieta provinciana.»
Àquela hora, de onde nos
encontrávamos, estiraçado eu ao comprido sobre os ladrilhos do poial, ela
sentada numa cadeira de bunho, baixa e atarracada, mas de espaldares pintados
com rameados e floridos de vivíssimas e garridas cores, o sol diluía-se pelo
horizonte em farripas de rosa e púrpura, azulinas brilhantes e cinzentas
alaranjadas, que o verde dos pinheiros bravos rasgava num dentado disforme mas
visível, enraivecido mas pacificador de quem se apresta para morder a escuridão
noturna como quimera inconformada. Sempre fora este o local de minha eleição para
aguardar e observar o fim do dia, desde pequeno, chegado da escola como da
retouça, ora de papo para o ar, prestando atenção ao ativo trânsito dos pombos
e andorinhas, ou de barriga para baixo sentindo a mornidão dos ladrilhos vermelhuscos,
lendo, apoiado nos cotovelos. Porém, sem a companhia dela, nem o seu destilar
narrativo, nesse vaivém de agulhas que entretecem as lembranças e enredos das
almas, pois que a vida lhe exigia ações maiores que o puro devaneio, no cuidar
dos netos e alimentá-los, vesti-los e calçá-los, e restantes afazeres de grande
valia para levar a família com asseio e bem pensada ao porto onde o amanhã mais
não é que destino (de chegada). E partida. Para outros amanhãs que hão de
repetir-se e escoar-se na ampulheta das eternidades, que deve ser plural e não
ordinária, simples, porquanto apenas uma eternidade nunca bastaria para reunir
toda a vida e o seu contrário, que outra parte dela mesma é.
«A tarde, aliás, todo o
dia!, sob esse sol de maio aspergido pelos inúmeros odores e aromas silvestres do
auge da primavera que a brisa disseminara, e dissolvera também pelas ruelas estreitas
e tortuosas da aldeola que Portalegre então seria, fora excecionalmente prazenteira
e amena, o que sem dúvida muito contribuíra para Joaquim, curiosamente sinónimo
de “[pilar] guardião”, se demorasse mais do que o habitual e se descuidasse nas
horas, que o terão surpreendido quando ainda conversava com Ana, num pôr-do-sol
que lesto se confirmou sol-posto. Tanto ele como ela teriam, quiçá, sentido a
fuga do tempo como um roubo à felicidade, pois se este em vez de passar, corre,
então quem o vive fica sem ele para fazer quanto dele ainda não fez o que nele
fazer queria, motivando assim que prologassem as despedidas nesse para lá do lá
que nos inscreve com os eitos da alma plena, e arrebata, e faz crer que toda a
eternidade, até ela!, é por demais curta, breve e pequena. Pelo que, assim
alheios, ele e ela, ela e ele, aos temores e fantasmagorias que a noite podia
trazer, tentaram impedir, primeiramente, e estender depois, ao máximo dos
máximos o derradeiro instante da separação, porém este, cruel como todos os
tem-que-ser inevitáveis da vida, surgiu imperioso do interior da casa senhorial
pela voz da mãe de Ana, igualmente serviçal nela, o que é já de si uma inequívoca
redundância, pois que Ana significa exatamente “Mãe”, nesse tom que denuncia
maior determinação que autoridade, como soe ser o ordenar materno, é evidente!,
no entanto de incontornável cumprimento, no perentório e caraterístico e
pleonástico “Entra pra dentro Ana, que fazes aqui falta”, obrigando-os a
abreviar as despedidas, fechando definitivamente a cortina ao idílico enleio do
momento.
E Joaquim pôs-se de
pronto ao caminho, rumando a casa, pela carreteira irregular e pedreguenta, que
agora conhecemos por Azinhaga das Caronas, até cá a baixo, à ribeira, e dela
por aí acima, numa vereda ainda mais pedregosa, estreita e de mau-piso, que
subia a Serra até ao cume, ladeando a penedia da crista, e que depois dele
desce para as bandas dos Fortios, como chamamos hoje ao povoado que se vê lá do
alto, e que era precisamente onde ele morava. Teria bastante em que pensar,
talvez naquela que deixara havia pouco e da vida que lhe proporcionaria se
casassem, é certo!, que bem modesta haveria de ser, como também fora a de seus
progenitores, ou os dela, gente humilde e trabalhadora, pobre mas de nobre
sentir, e grande e mútuo afeto, embora desconhecendo sempre a maneira de o
referir e demonstrar, como era e é comum entre a maioria de nós, que nisso
pouco ou nada evoluímos desde então, pelo que não deu acordo do atardado da hora
e acentuado lusco-fusco a não ser quando, já a meio da subida, sentiu um
arrepio na espinha e todos os seus pelos e cabelos se eriçaram, mas prosseguiu
sem novidade, que pastor que é pastor acostumado está de sobra aos mistérios do
negrume, quer ele seja matinal, quando de madrugada ainda leva o gado para os
pastos, quer vespertino, quando volta com ele, seja verão ou inverno.»
E calou-se de repente,
durante dois ou três minutos sequer, no regaço, as agulhas quietas também, o
olhar fitando o vazio longínquo, absorta num espetáculo que só a ela era dado
assistir, mas que nem me atrevi a interromper, por recato e respeito, sem
dúvida, que se alguém se perde dessa maneira no além a que o Tejo faz linda,
devemos esperar que volte por seu pé e iniciativa, ainda assim o sobressalto
não transtorne o viandante…
«E não tinha ele mais
que oito passos dado, quando reparou numa jovem sentada num tamborete de pele
de camelo, mesmo à sua frente, à esquerda da vereda, diante dessa espécie de
gruta a que hoje denominamos Cova da Moura, acenando-lhe em chamamento com a
destra, e sustentando na canhota uma salva de prata com figos secos dourados pelo
melaço, de volumosos, ondulados e compridos cabelos jungidos na testa por
diadema de ouro cintilante de predarias a luziluzir, vestida com a exuberância
das sedas, tules e brocados, que só as princesas e fadas ousam trajar no quotidiano,
colares de pérolas brancas e negras, braçadeiras e braceletes de prata com
diamantes incrustados, de silhueta esbelta e escorreita, linda de morrer e capaz
de enfeitiçar qualquer mortal. Despertar da letargia do namoro e deparar-se a
pessoa, por muito afoita e corajosa que seja, com tal aparição, deixá-la-ia
certamente à beira dum colapso, prestes a entrar em pânico… E Joaquim não foi
exceção nenhuma nesse capítulo: tremeu que nem varas verdes, sentiu a náusea provocada
pelo chão a fugir-lhe debaixo dos pés, e no peito a opressão ansiosa e
acelerada dum coração que tomou o freio e partiu à desfilada, e a toda a brida.
E não fora a meiguice singela da dama, o seu semblante gracioso e sereno, seu
sorriso de confiança pacificadora, cuja tranquilidade contagiava quem a visse,
ele tinha desatado a correr no ó-pernas-pra-que-vos-quero Serra abaixo. Porém,
levou a mão ao gorro de pelica de borrego que lhe cobria a cabeça, e saudou-a
com tímida e acanhada desenvoltura num “Bô-a nô-te, Se-nhô-ra…” aquela que tão
inesperadamente lhe surgira no sítio mais ermo do caminho de regresso a casa,
ao fim do dia, e depois de toda a grande felicidade e alegria com que vivera
essa tarde de domingo.»
As pálpebras pesavam-me
toneladas nessa altura, pelo que as cerrei num suspiro fundo e prolongado,
esvaziando por completo todo o ar que o corpo podia ter refreado até aí. E nada
sabia do universo e da vida, senão esse recorte de tempo e lugar que as palavras
de Maria da Penha me erigiam na visão interior, sentindo-me em perfeita comunhão
com o não-sei-quê do qual, apenas, e exclusivamente, a alma tem a paleta exata
para pintar em nós as emoções suficientes para ir ao lado de lá do lá e voltar
no mesmo imediato.
«Então ela,
correspondendo à saudação do jovem Joaquim, na voz doce e timbrada, como que
acompanhada por divinas liras e flautas, que só em sonhos os mortais se lembram
de alguma vez ter ouvido, igualmente lhe desejou “Boa noite, meu amigo”, aproveitando,
contudo!, também para repartir com ele as passas de figo que parecia saborear,
convidando-o a que tomasse quantas quisesse: “Boa noite, e feliz regresso a
casa bom homem… Olha: és servido? Não queres cear comigo?” E indicou-lhe os
frutos, que lhe fizeram água na boca, por apetitosos e desenxovalhados.
Porém, como ele ripostasse
num “obrigado, senhora, mas já estou atrasado e devem estar em cuidado, os meus
pais”, que o receio e a discrição aconselham nestes casos, ela lhe sugeriu,
oferecendo a salva de prata, “então leva os que quiseres, para comer pelo
caminho, ou dar a quem te aprouver.” Posto o que, de repente e acabrunhado,
tirou uma pequena mancheia de frutos secos, que meteu no bolso dos calções de
estamenha, e se pôs em marcha, despedindo-se, primeiro refreando o passo para ocultar
o desejo de fugir a sete-pés, como também por medo que ela reparasse no seu
medo, depois, mal lhe ficou fora do alcance e da vista, correndo a bom correr, descendo
a encosta do outro lado da Serra, rumo aos Fortios, quase voando, por assim
dizer, até que, num eis senão quando dos que a vida tem reservados só para
estes momentos, com o lar já a dois passos, voltou a meter a mão no bolso para
aventar as passas de figo, mas abrindo-a para o fazer, reparou que não eram
frutos secos o que nela tinha, mas sim três libras(*) em ouro,
reluzentes e magníficas, que eram na altura uma fortuna ímpar, como ainda hoje
em dia serão. Com elas comprou, depois, uma hortinha de fértil terra e fácil
amanho, provida de moradia e cómodos pra gado e alfaias, ali nas margens do Rio
Sor, no sopé comum à cidade e à serra, onde este ainda não passa de uma
ribeirota de ténue caudal e fraca corrente, principalmente no estio, que é
quando a água mais falta faz às novidades, e a basta distância do seu desaguar
no grande Tejo, lar de todas as Tágides e sonhos, conjuntamente com o Raia, que
o encorpa no afluente dele conhecido pelo Sorraia, exatamente esse que fecunda
as planícies e lezírias onde as éguas e cavalos de sua raça e estirpe, a sorraia,
pastam, cabriolam e galopam à desfilada, que tomou como lar e querência dos
filhos logo que desposou Ana, a
sopeirinha que fora destino e propósito das suas caminhadas domingueiras
pela charneca brava, interruptas durante quatro anos, a fim de com ela
conversar, tanto e tão aprazivelmente, que mesmo temendo o anoitecido escuro,
não raro este lhe surpreendeu os passos no retorno a casa. E ao primeiro desses
filhos, que por sinal foi uma filha, formosa como às flores, como soía
dizer-se, deram, ele e ela, na alvorada dos seus chamegos e paixão o nome de Maria,
que como todas e todos sabem significa "jovem", da Penha, que mais
não é que outra maneira de dizer "serra", ou Jovem da Serra em justa
gratidão a essoutra donzela que o interpelara num ermo ao lusco-fusco, e que
foi a primeira a usar tal nome, a primeira a ser Maria da Penha, e avó da avó
de minha avó, que também mo deu a mim...» calando-se de seguida, compenetrada
na tarefa de rematar as malhas num casaquinho de lã que estava a fazer para a
bisneta mais nova, com duas agulhas de cobre e grosso novelo, de quem queria
ser madrinha em maio deste ano, que é de todas as alturas do ano a que mais
estima e encanta, não só pela cor dos campos como pelo cristalino das águas nas
fontes e regatos.
Aliás, reconheço agora,
se bem me recordo, que nem notei o silêncio em que ambos ficáramos, nesse entardecer
de luz niquelada pela paleta do ocidente, uma vez que ela não voltara a
conversar comigo a não ser para as circunstanciais despedidas e encomendação de
beijos e cumprimentos à demais família, por quem ela nutre natural e desafetada
afeição, de tal forma eu me quedara cismando e absorto pelo ouvido antes, e
que, a pouco e pouco, ia vendo sob nova luz.
«Terá sido, mesmo assim,
que tudo sucedera», congeminei para comigo, sublinhando-o com aquele (in)caraterístico
«hun?!?...» que vinca a união entre as céticas sobrancelhas mais ou menos esclarecidas.
Todavia, encolhi os
ombros no típico e afortunado «Quem sabe!», de quantos e quantas para quem a
dúvida e a inquietação em muito pouca conta se têm.
(*)LIBRA – arrátel, ou unidade de peso e massa com aproximadamente 454 gramas, tendo sido também, num período da História Nacional, uma moeda portuguesa antiga.
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