VINTE E QUATRO HORAS DA VIDA
DE UMA MULHER
Stefan Sweig
Não é pelo fato de alguns livros serem relativamente pequenos que serão obras menores, mas antes pelo contrário, que se um homem tem algo para dizer ao seu semelhante, di-lo, sem rodeios, perífrases nem fosquices ou maneirismos, afetações ou impertinências, envieses ou maus-olhados, complicados de sabujo ou papagaíce de cocote, pois por mais importante que seja o que se quer dizer, isso se faz com pouca lambança e menos artifício, diz-se de uma só vez e está dito, fica seguro e firmado entre emissor e receptor, assegurado e de olhos nos olhos, como um aperto de mão, um beijo, um abraço, um soco, um pontapé, sem o mínimo equívoco, salamaleque ou astuciosa manigância, engenhosa mentira de subalterno ou complexa aritmética na artimanha das rasteiras da fala. Fica ali, de pronto, exposto como um brado, um marco geodésico, um rio que corre entre montanhas, uma cruz no alto do outeiro, um uivo de lobo ao luar, de pé e hirto na paisagem da noite, a interromper as passadas ou a rasgar as nuvens, estabelecendo ligação imediata entre o céu, a alma dos homens, e a terra negra de cultivo, o chão estercado e fértil, ou entre os ossos de pedra cinzenta e vulcânica dos esqueletos maternos e os seios ancestrais que nos abocanham a fome de pecar, de comer o fruto das paradisíacas frondes. Não carece de enfeites nem de néones suplementares, de carnavalidades natalícias nem de pisca-piscas de sedução e convencimento alheio, mas joeira o grão da rabeira como se fora uma acesa vela no breu da madrugada, uma fresta de luar na clarabóia do telhado, uma árvore milenar no relevo da planície, uma bica de água cristalina a jorrar dos confins da contramina na serra do tempo. Porque nele, normalmente, pode ser e é dito tudo quanto deve ser dito e havia para dizer, sem remorsos nem escusas de falsa e hipócrita virgem.
Stefan Sweig
Não é pelo fato de alguns livros serem relativamente pequenos que serão obras menores, mas antes pelo contrário, que se um homem tem algo para dizer ao seu semelhante, di-lo, sem rodeios, perífrases nem fosquices ou maneirismos, afetações ou impertinências, envieses ou maus-olhados, complicados de sabujo ou papagaíce de cocote, pois por mais importante que seja o que se quer dizer, isso se faz com pouca lambança e menos artifício, diz-se de uma só vez e está dito, fica seguro e firmado entre emissor e receptor, assegurado e de olhos nos olhos, como um aperto de mão, um beijo, um abraço, um soco, um pontapé, sem o mínimo equívoco, salamaleque ou astuciosa manigância, engenhosa mentira de subalterno ou complexa aritmética na artimanha das rasteiras da fala. Fica ali, de pronto, exposto como um brado, um marco geodésico, um rio que corre entre montanhas, uma cruz no alto do outeiro, um uivo de lobo ao luar, de pé e hirto na paisagem da noite, a interromper as passadas ou a rasgar as nuvens, estabelecendo ligação imediata entre o céu, a alma dos homens, e a terra negra de cultivo, o chão estercado e fértil, ou entre os ossos de pedra cinzenta e vulcânica dos esqueletos maternos e os seios ancestrais que nos abocanham a fome de pecar, de comer o fruto das paradisíacas frondes. Não carece de enfeites nem de néones suplementares, de carnavalidades natalícias nem de pisca-piscas de sedução e convencimento alheio, mas joeira o grão da rabeira como se fora uma acesa vela no breu da madrugada, uma fresta de luar na clarabóia do telhado, uma árvore milenar no relevo da planície, uma bica de água cristalina a jorrar dos confins da contramina na serra do tempo. Porque nele, normalmente, pode ser e é dito tudo quanto deve ser dito e havia para dizer, sem remorsos nem escusas de falsa e hipócrita virgem.
É o caso de VINTE E QUATRO HORAS NA VIDA DE UMA MULHER, coisa de 160 páginas em formato de bolso e tipo médio, publicado pela Livraria Civilização – Editora, na tradução de Alice Ogando, antiga senhora das adaptações radiofónicas dos clássicos portugueses como estrangeiros, pelo menos dos não censurados clássicos, dos regimentais e incontroversos individualistas, todavia etiquetas pouco aderentes à pele do autor, pacifista, cosmopolita dos sete costados, deveras dado ao convívio e amizade, sustentáculos do Mundo de Ontem mas igualmente renovados no Brasil, País do Futuro, cuja panóplia de companheiros vai desde Freud, Dalí, Romain Rolland, Jules Romains, onde estabelece definitivamente que ler nunca é, nem pode ser, um ato falho de imaginação, mas ao invés, exige o exercício acuidado da descodificação de numeroso rol de símbolos, números, figuras geométricas, designações alfabéticas, cabalas, sem as quais os pequenos livros não sobreviveriam para lá de suas ralas páginas, e que balizam a mensagem que inspirou a sua criação e escrita. Porque ela estava lá e indicava, ao tempo, o único caminho possível para o povo judaico da Alemanha nazi, se se quisesse subtrair ao genocídio hitleriano, que seria, conforme o próprio fez, o caminho do mar até ao novo mundo ou país do futuro, e cuja inobservância pelos seus compatriotas esteve na génese do suicídio a dois, dele e da mulher, aliás também este à imagem e imitando aqueloutro de Kleist e Henricheta, seus biografados, repetindo-o, sendo-lhe analogia, tal como nesta novela Henricheta repete Mrs. C, reflexo intencional desse jogo de alegorias e seu espelhamento, processo de repetições em catadupa, de imagens que se multiplicam noutras suas derivadas, transformações apenas possíveis pela actividade heurística da metáfora, alegorias que se desdobram em analogias que, por sua vez, outras figuras alegóricas geram e espelham, e que afinal é, são, a confluência descritiva de sentidos que carateriza a ficção romanesca, o discurso narrativo apoiado na metamorfose e inquietude do (dis)curso da história. E da História – que ambas convergem sempre para aglutinarem-se mal a análise se faça.
Porque, confesso, aquilo a que
assisti sobretudo na leitura, não foi tanto as 24 horas na vida de uma mulher,
mas sim 24 anos (por exemplo, entre 1918 e 1942) da vida da Europa, esse
continente entre guerras, ditos assim dez anos antes do seu terrífico apogeu,
em 1932, numa reunião, tão suspeita quanto ocasional, de sete pessoas numa
pequena pensão da Riviera, de onde, porque lateral e paralela, era possível
bisbilhotar a alta burguesia da época, enquanto mediática clientela do excelso,
e em moda, Hotel Palace. Ou cada passo dos ponteiros no mostruário de um relógio
de estação, símbolo de uma época que tem por núcleo fundamental a revolução
industrial, os tempos modernos, simultaneamente imagem emblemática do cosmos,
do tempo mitológico ou Cronos, mas igualmente do tempo anual das quatro
estações, cruz do ponto cardeal global sobre o espaço-quando absoluto, para
(re)desenhar nele os oito pontos cardeais da Rosa dos Ventos, fazer renascer
nela, ou por ela, O Cavaleiro da Rosa,
estrangeiro à cruz grega, mais tarde de malta, como se fora um Santo André,
cuja crucificação em X, acoplada ao cristianismo, traduz o preciosismo barroco
da Rosa Cruz, significando ela mesma um ciclo de renovação, indicativo da
urgência de fuga do povo judaico, caso este não queira que lhe venha a suceder
o que outrora aconteceu a essas duas ordens (Hospitalar de S. João e Santo
André) sob o jugo beneditino, decisão que carecia de imediatez, de pressa, pois
corria-se contra o tempo, aumentando-lhe o risco, uma vez que quanto mais
tardia, mais se tornaria arriscada essa fuga, como enfim se veio a demonstrar
mesmo impossível e mortífera para milhões de pessoas, chacinadas nos campos de
concentração nazis.
Principalmente porque nela, nesta
novela, tão iniciática quanto fantástica, está lá tudo isso dito mas calado,
visto que carece de ser entendido usando a imaginação, estabelecendo relações
entre termos anteriormente pouco relacionáveis, dito e sublinhado em diferentes
e repetidas formas alegóricas, em analogias transformadas, incluindo essa quase
pleonástica fórmula cabalística, derivada do modo de interpretação e análise do
Antigo Testamento, cujo trajeto consiste em repetir as repetições, muito
didacticamente traduzindo o alfabeto na sua expressão numérica, para assim
ganhar a certeza de vir a ser compreendido por todos os homens e todas as mulheres,
entendido pelo maior número de pessoas, ou de leitores envolvidos e
interessados, como se fosse necessário explicar tão exaustivamente uma coisa,
um cenário, um enredo, uma situação, uma chamada de urgência a alguém
incapacitado de ver com os olhos, mas sobretudo incapaz de imaginar tudo aquilo
que vá para além daquilo que as fere e impressiona. Isso, a urgência de partir
mar fora sem receio de perder tudo o que ficara, o que deixara para trás, como
antes já se conseguira (da Babilónia e do Egito) com engenhoso sacrifício e a
tenacidade de povos eleitos na provação divina.
Porque escrever é transferir
segredos, forjar cumplicidades anteriormente tidas por impossíveis e somenos
recomendáveis, revelar inconfessáveis sentimentos, prospetivas e opiniões,
transgredir os limites do racional através do inaudito, estabelecer ligações
entre diferentes identidades, rasgar absolutos, renovar e multiplicar as
possibilidades de ser quando em sendo se esculpem no verbo, tanto o do seu
criativo como do leitor, que assim se insurgem para lá das fronteiras restritas
da significação e soletrações ordinárias. É iniciar humanidades onde antes
apenas havia percepções e sentimentos através da transfusão de metáforas,
acalentar a liberdade pela expressão máxima da sua capacidade de disseminação e
sobrevivência, anexá-la à teoria de vida de cada indivíduo tornando-a tão
multifacetada quão diversa, e, por isso mesmo, não somente diversa e diferente
como geradora de diversidade, rasgando não um mas tantos caminhos para a eternidade
quantos os leitores, criadores e demais intervenientes que a interiorizam ou a
expõem, assimilam como divulgam, e dispostos estão a reproduzi-la, recriá-la,
aspergi-la em cada outro, semelhante, familiar, estranho ou simples
"espetador esporádico e momentâneo" com quem contatem no seu
dia-a-dia.
Pelo que se pode afirmar que a
verdadeira tragédia de Stefan Zweig foi essencialmente fruto da sua humanidade,
da sua crença no ser humano e na sua inteligência, por quem acreditou ser
suficientemente lúcido para as ver além do visível e capaz de querer acima do
seu egoísmo, necessidade de desenrasque adjuvante ao salve-se quem puder da
sobrevivência animal, instinto e sentido de defesa particulares à visão antropocêntrica,
narcísica, niilista, ortodoxa dos cânones bíblicos do mundo e da existência, e
que uma vez desiludido se aniquilou, rendeu ao suicídio, transformando a morte
num ato público de denúncia, um grito de alerta como de revolta, chamando a
atenção para a incontinência xenófoba e intentou fazer retroceder a marcha aos
nacionalismos, inverter as directivas burguesas, corporativistas e industriais
que os geraram, a todos eles, bem como à sua vontade de poder na tentativa de
domesticar a liberdade, servindo-se dela para oprimir outras nações e povos, e
instituir a consciência coletiva como seu principal refém para obstruí-la ou
amputá-la a quem se lhe opusesse, afinal tão comum ao século passado como ao
atual, que ao abrigo dos conceitos e convenções de defesa contra os terrorismos
utilizando práticas terroristas, legitimadas no quorum das nações pelo medo e
prevenção deles, vai chacinando outros povos onde se suspeita estarem alguns
dos mentores e/ou operacionais desse terror.
Visto que só um louco desumano, ou
ser perverso de baixíssima índole, seria capaz de assistir à captura,
humilhação e morte dos seus amigos, sem tentar contrariar positivamente isso,
sem lutar por eles, alertando-os dez anos antes, e muito antes de todos os
mais, naquele jeito de ir sempre à frente expondo-se exemplarmente, indicando o
caminho do futuro sob a imperiosidade da fuga, usando a suas principais armas,
a ficção romanesca e língua, como gesto de denúncia e brado de incitamento,
deveras ansioso conforme lhe caprichou a vida e é comum a quem, até na morte,
se quis demasiadamente impaciente: fazendo desta obra a sua carta para os
conhecidos e amigos, também eles possíveis vítimas dum amok europeu que germinou no obscurantismo para contaminar toda a intelectualidade
vienense, naquela indiscritível loucura que é a guerra – mundial para quem lhe
assistiu de fora, mas efectivamente pessoal e cruel para quantos nela, ou por
ela, pereceram. E que nem a sua criação literária poupou!...
Joaquim Castanho
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