A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

segunda-feira, dezembro 29, 2014

ALHEAMENTO E FUGA

ALHEAMENTO SEM FUGA




Essa esguia e pulcra sombra que desvia
Aos momentos fulcrais a sua essência,
Ante a imperativa luz que nos traz o dia
Do além e apagado breu da noite acesa,
É nossa defesa, ou só meiga demência?

Porque, se quando a todos os gestos presa
Fica ilesa a ânsia num grito tão fugaz,
Agudo, deflagram avalanches d’incerteza,
Põe-se num desterro a voz menos audaz,
Apertam-se gargantas como dum nó azedo,
Alicerçam-se degraus na pirâmide do medo,
Reescrevem-se a sangue e lídima urgência
Como se fora Odisseia toda a dependência…

Então, não restam dúvidas, sequer agouros
Que o sonho invade o tempo não dormido,
Pondo coroas de glória em verdes louros
Se o nosso de alheios em abstrato é surgido.   


J Maria Castanho

quarta-feira, dezembro 24, 2014



Me doi o verbo no fumo
Dum verso que não disse; 
E na alma onde o arrumo
Se esfuma agora a pena
Do poema a prevenir-se...

J Maria Castanho
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AS TRÊS LIBRAS EM OURO

AS TRÊS LIBRAS EM OURO

Por Joaquim Castanho




«Naquele tempo, Portalegre, era bastante diferente do que hoje é, e à sua volta, mais não havia do que matas, silvados e charnecas, onde vulgarmente se acoitavam também foragidos, salteadores e demais indesejáveis ou marginais. Os soutos e carrascais competiam livremente entre si, sendo utilizados pelos habitantes para caçarem, recolherem lenha para uso doméstico e fornos de carvão, madeira para a construção de cómodos e habitações, frutos silvestres e alguma vegetação mais tenra para alimentarem animais. Eram igualmente visíveis algumas manchas florestais de sobreiros, azinheiras, castanheiros e carvalhos, embora estas tivessem já a marca da orientação explícita de recursos económicos dos senhores de terras, que as exploravam sem grande exigência de pormenor para montarias, montados, combustível e fabrico de carvão vegetal. Porém, aos aldeões e populares essa valia de muito pouco ou nada servia. Os tempos eram outros e os costumes também. Incluindo as relações sociais ou de convivência entre proprietários e despossuídos de território.
As raparigas e rapazes dos arredores, logo que atingiam tamanho e força para serem de algum préstimo – o trabalho da criança é pouco, mas quem não o aproveita é louco, conforme rezava o rifão –, começavam a ganhar o seu sustento servindo "a de comer" nas propriedades onde nasceram ou a que seus pais estavam adstritos, jornadeando desde que o sol nascia até que o sol se punha. Os mais expeditos e as mais expeditas ficavam sob o comando direto dos senhores, enquanto os lerdos e inadaptados de seus capatazes e encarregados, onde os tratos de polé se não faziam rogados. A barriga era mal pensada e o de sol-a-sol se iniciava de madrugada para findar noite feita. Se morriam novos ninguém os lamentava, antes pelo contrário, se dizia um alívio por menos uma boca a sustentar. Fizessem o que fizessem, nunca valiam o pão que comiam, como costumavam dizer os populares.
O pensamento mágico era, pois, mais professado do que é hoje o pensamento lógico, não obstante as bastas licenciaturas e prolíferos doutoramentos que grassam por aí. Ninguém se formava em nada e se, por ventura, alguém fugia à mediania, tinha à perna tanto senhores como iguais. O obscurantismo e preconceito estavam tão fortemente alicerçados, que as suas raízes ainda hoje vão reverdecendo aqui e ali, onde o "chão mental" lhe facilita a cultura e cultivo. Pouca gente vai além do saber fazer com respetivo e consequente saber aprender ou saber ensinar, e saber ser como saber estar são coisas dispensáveis, senão mesmo consideradas afetações de inadaptados e quejandos. Ter por ter que seja um carro topo de gama, nunca princípios, saberes e valores que frutificam e proliferam de estaca, o que não convém absolutamente a qualquer governo, sobretudo dos que pensam que as leis democráticas se esgotam na Constituição, e mesmo essas são para serem bonitinhas e inglês ver, e jamais para cumprir.»


         Eu mal respirava, temendo que se o fizesse, Maria da Penha, senhora expedita e lúcida, cuja vivacidade melhor retratava uma jovem de 18 anos do que alguém com os 88 que deveras tinha – e tem –, se calasse ou invertesse o tom à narrativa. Qual ornitologista em observação de espécie exótica e rara, atento e em suspensão, preocupava-me em não perder o mínimo som, o menor gesto, qualquer pestanejar ou sustenido que emitisse. Todas as coisas ditas foram preditas também. A expressão acompanhou-as como um sublinhado detetável mas invisível. Dizem que muito pouco há da realidade que não tenha sido realidade já, e eu acredito. Que não há auroras sem alicerces nos outroras... Umas no passado próximo, como é óbvio, porém outras nos outroras mais remotos e profundos da humanidade, a que a poeira do esquecimento, camada sobre camada, foi alterando as formas exteriores, os contornos visíveis por notáveis ou não, pelo seu inverso.    
E continuou: «Os homens e mulheres de um país, de um território qualquer, seja ele de agora como da profundidade remota dos tempos, descavam a sua sepultura à medida que avançam, edificam, constróem, se disseminam noutros tempos e noutras gentes – como afirmou o poeta, "se vão da lei da morte libertando" –, com ou sem o exercício propósito de o fazerem, é verdade!, ramificando-se por palavras e adventos, criando e recriando continuamente os seus modos de ser e de pensar, sem um lamento, e as mais da vezes, reconhecendo, mal comparado seja, como se não tivessem nascido para outra coisa. E infiéis, ou bárbaros, são apenas os que acreditam (no contrário). Sobretudo as raparigas... As filhas dos rendeiros e súbditos vassalos desse alguém cujo algo os abarcava e incluía. Sim, que a essas estava vedado serem bonitas e namoradeiras, ou apenas apresentáveis e desenxovalhadas, uma vez que sendo-o, sem dúvida despertariam a líbido de seus "donos" ou os filhos destes, se novos por que insaciáveis, se velhos por que o verde ramo lhes renova o viço, pelo que, indubitavelmente, todas as que ansiavam preservar-se donzelas e puras para o seu conversado, perspetivando a prometida união, só muito encobertas e andrajosas poderiam aparecer em público, e mesmo assim correndo o risco de acicatar invejas, fantasias e cobiças, a que não correspondiam, claro está, mas que quem as considerava suas por nascimento e direito proprietário, quais crias de seus rebanhos ou manadas, instava em usufruir.»
O seu tom, era calmo, embora desembaraçado, mantendo o deslizar fluvial da corrente espraiada dum rio que não tem pressa de alcançar a foz, desenrolando-se como uma velha ladainha esmaecida pelas inúmeras repetições que tivera, invocando aqui e ali preitos antigos, mas sem a acérrima envolvência duma engajada, antes como quem apenas sopra nas cinzas para avivar as memórias que o tempo nunca apagou definitivamente, dar vida às palavras que já teriam sido mais que isso, talvez motivação e ferramentas, objetos sonoros de arremesso ao oceano de consciências amorfas com que o tempo vai engrossando as águas do esquecimento.
«Desde a extinção do sistema matriarcal, que aqui imperou durante milénios, que quem não tinha de seu, nada era. E quem tinha, de algum lado lhe viera, à semelhança do que ainda hoje afirma o povo ao referir que "quem cabritos vende, e cabras não tem, de algum lado lhe vêm", pois do trabalho ninguém enrica, sobretudo não sendo remunerado como então não seria, mas antes um cumprir sina que um amealhar, e, salvo raras exceções que, por recompensa de dedicações ou cobrança de favores prestados, conseguiram ter coisa terrena de pertença, uma vez que, todos e todas, não sendo escravos e escravas também não eram livres, ou sendo livres mais não seriam do que escravos e escravas com licença para circular e obedecer, tal e qual como Ana e Joaquim, exatamente esses dois de que passo a falar-te de seguida com maior e particular atenção.
Joaquim era pastor como seu pai, e seu avô já o fora, e até mesmo sua mãe e a mãe de sua mãe já o teriam sido, nas terras de seu senhor, lá para as bandas dos Mártires, como posteriormente vieram a chamar-se esses sítios; e Ana, criada ao serviço da senhora de seu senhor igualmente, mas sob sua inequívoca proteção, porque pertença sua, claro está, cujos pastos iam daqui a Alegrete, mas ele, todavia, mais dado e atreito aos benefícios do convívio e à cidadania, dos confortos cortesãos e paleio palaciano, preferia ter a sede no castro que mais tarde veio dar origem à nossa cidade. Ela era moça que não teria mais de 15/16 anos de idade, embora já desde os 12/13 tivesse o tino e corpo de uma mulher feita, como quase todas as raparigas daqueles tempos, sobretudo aquelas que tendo escapado às agruras dos maus-tratos, fome, doença ou trabalhos pesados demais prà estatura, a essa idade aportavam; ele andaria pelos 17/18, mais coisa menos coisa, curtidos desde a alcofa atrás do gado, por isso mesmo sortido e sustentado dele, quer no leite e queijos, como nalguma carne se a ocasião o propiciava, como também do muito que de comestível há por esses campos fora, frutos silvestres ou cogumelos, espargos e raízes, ervas e rebentos, que bastos são com o dito préstimo, não obstante muitos tenham sido irradiados da nossa dieta provinciana.»
Àquela hora, de onde nos encontrávamos, estiraçado eu ao comprido sobre os ladrilhos do poial, ela sentada numa cadeira de bunho, baixa e atarracada, mas de espaldares pintados com rameados e floridos de vivíssimas e garridas cores, o sol diluía-se pelo horizonte em farripas de rosa e púrpura, azulinas brilhantes e cinzentas alaranjadas, que o verde dos pinheiros bravos rasgava num dentado disforme mas visível, enraivecido mas pacificador de quem se apresta para morder a escuridão noturna como quimera inconformada. Sempre fora este o local de minha eleição para aguardar e observar o fim do dia, desde pequeno, chegado da escola como da retouça, ora de papo para o ar, prestando atenção ao ativo trânsito dos pombos e andorinhas, ou de barriga para baixo sentindo a mornidão dos ladrilhos vermelhuscos, lendo, apoiado nos cotovelos. Porém, sem a companhia dela, nem o seu destilar narrativo, nesse vaivém de agulhas que entretecem as lembranças e enredos das almas, pois que a vida lhe exigia ações maiores que o puro devaneio, no cuidar dos netos e alimentá-los, vesti-los e calçá-los, e restantes afazeres de grande valia para levar a família com asseio e bem pensada ao porto onde o amanhã mais não é que destino (de chegada). E partida. Para outros amanhãs que hão de repetir-se e escoar-se na ampulheta das eternidades, que deve ser plural e não ordinária, simples, porquanto apenas uma eternidade nunca bastaria para reunir toda a vida e o seu contrário, que outra parte dela mesma é.
«A tarde, aliás, todo o dia!, sob esse sol de maio aspergido pelos inúmeros odores e aromas silvestres do auge da primavera que a brisa disseminara, e dissolvera também pelas ruelas estreitas e tortuosas da aldeola que Portalegre então seria, fora excecionalmente prazenteira e amena, o que sem dúvida muito contribuíra para Joaquim, curiosamente sinónimo de “[pilar] guardião”, se demorasse mais do que o habitual e se descuidasse nas horas, que o terão surpreendido quando ainda conversava com Ana, num pôr-do-sol que lesto se confirmou sol-posto. Tanto ele como ela teriam, quiçá, sentido a fuga do tempo como um roubo à felicidade, pois se este em vez de passar, corre, então quem o vive fica sem ele para fazer quanto dele ainda não fez o que nele fazer queria, motivando assim que prologassem as despedidas nesse para lá do lá que nos inscreve com os eitos da alma plena, e arrebata, e faz crer que toda a eternidade, até ela!, é por demais curta, breve e pequena. Pelo que, assim alheios, ele e ela, ela e ele, aos temores e fantasmagorias que a noite podia trazer, tentaram impedir, primeiramente, e estender depois, ao máximo dos máximos o derradeiro instante da separação, porém este, cruel como todos os tem-que-ser inevitáveis da vida, surgiu imperioso do interior da casa senhorial pela voz da mãe de Ana, igualmente serviçal nela, o que é já de si uma inequívoca redundância, pois que Ana significa exatamente “Mãe”, nesse tom que denuncia maior determinação que autoridade, como soe ser o ordenar materno, é evidente!, no entanto de incontornável cumprimento, no perentório e caraterístico e pleonástico “Entra pra dentro Ana, que fazes aqui falta”, obrigando-os a abreviar as despedidas, fechando definitivamente a cortina ao idílico enleio do momento.
E Joaquim pôs-se de pronto ao caminho, rumando a casa, pela carreteira irregular e pedreguenta, que agora conhecemos por Azinhaga das Caronas, até cá a baixo, à ribeira, e dela por aí acima, numa vereda ainda mais pedregosa, estreita e de mau-piso, que subia a Serra até ao cume, ladeando a penedia da crista, e que depois dele desce para as bandas dos Fortios, como chamamos hoje ao povoado que se vê lá do alto, e que era precisamente onde ele morava. Teria bastante em que pensar, talvez naquela que deixara havia pouco e da vida que lhe proporcionaria se casassem, é certo!, que bem modesta haveria de ser, como também fora a de seus progenitores, ou os dela, gente humilde e trabalhadora, pobre mas de nobre sentir, e grande e mútuo afeto, embora desconhecendo sempre a maneira de o referir e demonstrar, como era e é comum entre a maioria de nós, que nisso pouco ou nada evoluímos desde então, pelo que não deu acordo do atardado da hora e acentuado lusco-fusco a não ser quando, já a meio da subida, sentiu um arrepio na espinha e todos os seus pelos e cabelos se eriçaram, mas prosseguiu sem novidade, que pastor que é pastor acostumado está de sobra aos mistérios do negrume, quer ele seja matinal, quando de madrugada ainda leva o gado para os pastos, quer vespertino, quando volta com ele, seja verão ou inverno.»



E calou-se de repente, durante dois ou três minutos sequer, no regaço, as agulhas quietas também, o olhar fitando o vazio longínquo, absorta num espetáculo que só a ela era dado assistir, mas que nem me atrevi a interromper, por recato e respeito, sem dúvida, que se alguém se perde dessa maneira no além a que o Tejo faz linda, devemos esperar que volte por seu pé e iniciativa, ainda assim o sobressalto não transtorne o viandante…
«E não tinha ele mais que oito passos dado, quando reparou numa jovem sentada num tamborete de pele de camelo, mesmo à sua frente, à esquerda da vereda, diante dessa espécie de gruta a que hoje denominamos Cova da Moura, acenando-lhe em chamamento com a destra, e sustentando na canhota uma salva de prata com figos secos dourados pelo melaço, de volumosos, ondulados e compridos cabelos jungidos na testa por diadema de ouro cintilante de predarias a luziluzir, vestida com a exuberância das sedas, tules e brocados, que só as princesas e fadas ousam trajar no quotidiano, colares de pérolas brancas e negras, braçadeiras e braceletes de prata com diamantes incrustados, de silhueta esbelta e escorreita, linda de morrer e capaz de enfeitiçar qualquer mortal. Despertar da letargia do namoro e deparar-se a pessoa, por muito afoita e corajosa que seja, com tal aparição, deixá-la-ia certamente à beira dum colapso, prestes a entrar em pânico… E Joaquim não foi exceção nenhuma nesse capítulo: tremeu que nem varas verdes, sentiu a náusea provocada pelo chão a fugir-lhe debaixo dos pés, e no peito a opressão ansiosa e acelerada dum coração que tomou o freio e partiu à desfilada, e a toda a brida. E não fora a meiguice singela da dama, o seu semblante gracioso e sereno, seu sorriso de confiança pacificadora, cuja tranquilidade contagiava quem a visse, ele tinha desatado a correr no ó-pernas-pra-que-vos-quero Serra abaixo. Porém, levou a mão ao gorro de pelica de borrego que lhe cobria a cabeça, e saudou-a com tímida e acanhada desenvoltura num “Bô-a nô-te, Se-nhô-ra…” aquela que tão inesperadamente lhe surgira no sítio mais ermo do caminho de regresso a casa, ao fim do dia, e depois de toda a grande felicidade e alegria com que vivera essa tarde de domingo.»
As pálpebras pesavam-me toneladas nessa altura, pelo que as cerrei num suspiro fundo e prolongado, esvaziando por completo todo o ar que o corpo podia ter refreado até aí. E nada sabia do universo e da vida, senão esse recorte de tempo e lugar que as palavras de Maria da Penha me erigiam na visão interior, sentindo-me em perfeita comunhão com o não-sei-quê do qual, apenas, e exclusivamente, a alma tem a paleta exata para pintar em nós as emoções suficientes para ir ao lado de lá do lá e voltar no mesmo imediato.
«Então ela, correspondendo à saudação do jovem Joaquim, na voz doce e timbrada, como que acompanhada por divinas liras e flautas, que só em sonhos os mortais se lembram de alguma vez ter ouvido, igualmente lhe desejou “Boa noite, meu amigo”, aproveitando, contudo!, também para repartir com ele as passas de figo que parecia saborear, convidando-o a que tomasse quantas quisesse: “Boa noite, e feliz regresso a casa bom homem… Olha: és servido? Não queres cear comigo?” E indicou-lhe os frutos, que lhe fizeram água na boca, por apetitosos e desenxovalhados.
Porém, como ele ripostasse num “obrigado, senhora, mas já estou atrasado e devem estar em cuidado, os meus pais”, que o receio e a discrição aconselham nestes casos, ela lhe sugeriu, oferecendo a salva de prata, “então leva os que quiseres, para comer pelo caminho, ou dar a quem te aprouver.” Posto o que, de repente e acabrunhado, tirou uma pequena mancheia de frutos secos, que meteu no bolso dos calções de estamenha, e se pôs em marcha, despedindo-se, primeiro refreando o passo para ocultar o desejo de fugir a sete-pés, como também por medo que ela reparasse no seu medo, depois, mal lhe ficou fora do alcance e da vista, correndo a bom correr, descendo a encosta do outro lado da Serra, rumo aos Fortios, quase voando, por assim dizer, até que, num eis senão quando dos que a vida tem reservados só para estes momentos, com o lar já a dois passos, voltou a meter a mão no bolso para aventar as passas de figo, mas abrindo-a para o fazer, reparou que não eram frutos secos o que nela tinha, mas sim três libras(*) em ouro, reluzentes e magníficas, que eram na altura uma fortuna ímpar, como ainda hoje em dia serão. Com elas comprou, depois, uma hortinha de fértil terra e fácil amanho, provida de moradia e cómodos pra gado e alfaias, ali nas margens do Rio Sor, no sopé comum à cidade e à serra, onde este ainda não passa de uma ribeirota de ténue caudal e fraca corrente, principalmente no estio, que é quando a água mais falta faz às novidades, e a basta distância do seu desaguar no grande Tejo, lar de todas as Tágides e sonhos, conjuntamente com o Raia, que o encorpa no afluente dele conhecido pelo Sorraia, exatamente esse que fecunda as planícies e lezírias onde as éguas e cavalos de sua raça e estirpe, a sorraia, pastam, cabriolam e galopam à desfilada, que tomou como lar e querência dos filhos logo que desposou Ana, a sopeirinha que fora destino e propósito das suas caminhadas domingueiras pela charneca brava, interruptas durante quatro anos, a fim de com ela conversar, tanto e tão aprazivelmente, que mesmo temendo o anoitecido escuro, não raro este lhe surpreendeu os passos no retorno a casa. E ao primeiro desses filhos, que por sinal foi uma filha, formosa como às flores, como soía dizer-se, deram, ele e ela, na alvorada dos seus chamegos e paixão o nome de Maria, que como todas e todos sabem significa "jovem", da Penha, que mais não é que outra maneira de dizer "serra", ou Jovem da Serra em justa gratidão a essoutra donzela que o interpelara num ermo ao lusco-fusco, e que foi a primeira a usar tal nome, a primeira a ser Maria da Penha, e avó da avó de minha avó, que também mo deu a mim...» calando-se de seguida, compenetrada na tarefa de rematar as malhas num casaquinho de lã que estava a fazer para a bisneta mais nova, com duas agulhas de cobre e grosso novelo, de quem queria ser madrinha em maio deste ano, que é de todas as alturas do ano a que mais estima e encanta, não só pela cor dos campos como pelo cristalino das águas nas fontes e regatos.



Aliás, reconheço agora, se bem me recordo, que nem notei o silêncio em que ambos ficáramos, nesse entardecer de luz niquelada pela paleta do ocidente, uma vez que ela não voltara a conversar comigo a não ser para as circunstanciais despedidas e encomendação de beijos e cumprimentos à demais família, por quem ela nutre natural e desafetada afeição, de tal forma eu me quedara cismando e absorto pelo ouvido antes, e que, a pouco e pouco, ia vendo sob nova luz.
«Terá sido, mesmo assim, que tudo sucedera», congeminei para comigo, sublinhando-o com aquele (in)caraterístico «hun?!?...» que vinca a união entre as céticas sobrancelhas mais ou menos esclarecidas. 
Todavia, encolhi os ombros no típico e afortunado «Quem sabe!», de quantos e quantas para quem a dúvida e a inquietação em muito pouca conta se têm. 




(*)LIBRA – arrátel, ou unidade de peso e massa com aproximadamente 454 gramas, tendo sido também, num período da História Nacional, uma moeda portuguesa antiga.    

sábado, dezembro 20, 2014

CEIA

CEIA
 
 
 

Sim, neste Natal de charme,

De saudade pleno e cheio,

Somente a poesia veio

Cear comigo, visitar-me.



E até uma quadrinha

Me enleou na sua teia,
Naquele abraço de rainha...


– Oh, nossa língua minha

Que a beijar nos enleia!



Mas agora vou calar-me,

Pois é muito-muito feio

(Além de falta de charme)

Falar com a boca cheia.

J Maria Castanho

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sexta-feira, dezembro 19, 2014

VERTIGEM COTODIANA 



Do sentido que a vida tem
Surpresa giza quase nada, 
Que a gente sabe de onde vem
Por tanto ter sido ansiada... 

E se nos deixa assim suspensos, 
Talvez reticentes, ou sós,  
É por sermos servos apensos
Aos abismos que há em nós. 

J Maria Castanho
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quinta-feira, dezembro 18, 2014

RIMAR OU NÃO, NÃO É QUESTÃO



São inequívocas traições
As imitações de sotaque
Dando não-tons às entoações, 
Tapar com paletó ou fraque
Rimas que não rimam o jeito
De "Tejo" com "desejo", e assim,
Bater com a mão no peito, 
Falar: «poesia não é pra mim». 

Porque rimar ou não, não é tudo, 
Mas também não deixa de o ser; 
E pode o verso com rima ser mudo, 
E o omisso dela, muito dizer. 
Que a rima é como um dote
No casamento arranjado, 
Que até bem pouco importe
Se não ficou combinado... 

J Maria Castanho

terça-feira, dezembro 16, 2014



Antes 
        que 
eu fosse tu
                   chegaste!

J Maria Castanho

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DO PORTALEGRENSEAR E DA TEORIA



Toda a gente, que hoje em dia
Portalegrencia, foi gerundiando, 
Portalegrenseando, que aprendeu, 
Porque nada nasce sem a alegria
Da prática audaz, mesmo quando
Esse, ou essa, só pra isso nasceu. 


J Maria Castanho


terça-feira, dezembro 09, 2014

RECICLAGEM / COMPOSTAGEM / RENOVAÇÃO  




Cedo à tentação de cair,
À vertigem do abismo…
E nesse simples esvair
Onde me atento e cismo,
Eis o alento de reflorir!

J Maria Castanho
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segunda-feira, dezembro 08, 2014

PÉTALA DO DESEJO



Digo-te a voz;
Não sofreguidão.
Digo-ta por nós;
Não pela ilusão…

Mas doce e plana,
Nasce luminosa
Da luz que emana
A flama da rosa!

J Maria Castanho
ƸӜƷ ♫♪♫♪Ÿ♫♪ ♫♪ƸӜƷ



MISÉRIA MORTÍFERA




Descansa teus pés na sombra
É que o caminhar nos diz
Como um silêncio que deslumbra
Quantas e quantos caem a eito
Nas navegações do seu país.

Depois, esfrega a unha do dedo…
Esse grande, o do pé direito.
E tira-lhe a maravalha do medo
Que se cravou no caminho estreito.


J Maria Castanho

sábado, dezembro 06, 2014

_/\_ NAMASTÉ




Invocar é isso… É pressentir os gestos
Adivinhá-los ledo condomínio de agoras
Reconhecer, se jogas os longos e lestos
Cabelos, direção ao infinito, que me escoras
Nos mil instantes de que dependo (e acredito)

E me suspendem, ânsia contida, respiração
Comprimido âmago de mim, que só sou sendo
No amor que ensina, e abrevia a sina, lendo
Teu ser de mulher-menina, vestal de Arina
Mãe-Sol, que [é] A Deus, única na vida, germina.

J Maria Castanho
ƸӜƷ ♫♪♫♪Ÿ♫♪ ♫♪ƸӜƷ

SONHO ADIADO



Se eclode agora
Entre as palavras
O sonho que escora
Nossas rosas bravas,
Que, perdidas, talvez,
Desse norte nobre
Se escondem de vez
No punho dum pobre…
É porque ninguém crê
Que O dito demora
Nas palavras que lês
– Mesmo para quem vê!


J Maria Castanho
BIOPOEMA




Se se conclui
Que a vida flui
Como um rio que sorri;
Então, quem fomos, fui
E seremos quem à vida
Aceita, respeita e anui…

– Eu concluí!


J Maria Castanho
CIDADE CELESTIAL



Doce é o canto no azul profundo
Que nos elucida dos senões do mundo,
Pois o demais é retórica e intrigas
Urdidas na teia dos medos e fadigas,
Nos gestos avulsos, pecados e ais
Onde nascem a superstição e devaneios,
Além das premonições e falta de meios
Que ensombram os corações domésticos e sociais.

Porque a voz que sobe melhor se inclina
E é nessa urbe que floresce a prece
O apreço, a sensibilidade, a gratidão
Pela luz de Arina, a Sol que nos aquece
E beija pla manhã, e bota na imensidão
Seu brilho – palavra que vem de cima.

J Maria Castanho
ƸӜƷ ♫♪♫♪Ÿ♫♪ ♫♪ƸӜƷ

terça-feira, novembro 25, 2014

TÁBUA VOTIVA (DA EDUBA DE INANNA)




Absorve a seiva suave da luz matinal;
Deixa-a escorrer ao longo do silêncio cinzento;
Traduz-lhe os sinais recônditos e sutis.
Permite. Permite e confia.

Depois, memoriza a sílaba evanescente, solúvel
Ante a penumbra, diluída nas doces conjugações
Que misteriosa e sibilina afaga A Sol das dez horas.
A Estrela te incendiará na confiança desperta!

J Maria Castanho
ƸӜƷ ♫♪♫♪Ÿ♫♪ ♫♪ƸӜƷ
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