A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

sexta-feira, janeiro 30, 2015

AL'ARRIBA!


AL’ARRIBA!

Cinzento é o destino
Do dia que nasceu velho,
Mas nunca foi menino;
E que assim sobrancelho
Fez das suas à nobre gente,
Obrigando-as a vivê-lo
Com ganas de forte arrimo,
Pra torná-lo mais quente.


J Maria Castanho

quinta-feira, janeiro 29, 2015

LUA MENSAGEIRA


Lúdica, a lua cresce
E me ilude na espera
Do rosto que não esquece
Nunca, nem é coisa mera.

Já que primordial o vejo
E tenho na vida minha,
Lua leva-lhe este beijo
Pela quinta à tardinha.


J Maria Castanho

segunda-feira, janeiro 26, 2015

O PANÓPTICO INCINFORMADO


𝓸 PANÓPTICO INCONFORMADO
                 Joaquim Maria Castanho




Ontem, na tentativa de conviver de perto com aquilo a que comummente chamam “espécie humana”, fui até ao Café. Após bebericar da típica e apenicada chavenazinha a água castanho-escura com creme espumoso e dourado denominada “Bica”, deixei-me afundar na discreta leitura de um dos jornais do dia que adquirira no Quiosque Jardim. E afundar é a palavra exata. Precisa. Principalmente porque ainda não chegara às palavras cruzadas, que são o suprassumo ou tiro-e-queda na matéria, já ninguém estranhava ou notava a minha presença. Fora assimilado…

O dia acordara assim-assim, que é o tal jeito provinciano de referir tudo quanto é sonso e intragável mas não nos importamos de consumir, engolir, tragar, porquanto tem tanto de saber a nada como de a coisa nenhuma. Todavia o céu estava azul, daquele azul caraterístico dos desenhos animados, embora que polvilhado, aqui e ali, de farrapos de esbranquiçadas nuvens, ao caso, e, por sinal ou influência do modo vivente local, bem pouco apressadas.

Dei o meu melhor no apagamento, estratégia aprendida pelo íntimo convívio, diário e constante, com a minha aranha doméstica, que ocupa o canto inferior direito da janela do quarto, e que depois de feita a teia se apaga nela não fazendo outra coisa senão esperar que alguma mosca incauta ali se enleie. Então, salta-lhe em cima, e injeta-lhe, numa ferroada rápida, eficaz, profissionalíssima e fatal, o narcótico que há de adormecê-la a fim de a poder sugar paulatinamente, degustá-la viciosa e demoradamente como a substancial iguaria que para ela, sem dúvida, é.

“Há quem suba a descer”, conforme referiu Florbela Espanca no conto A Paixão de Manuel Garcia, e é inequivocamente esse afundar de mergulho no discreto areal do anonimato que o impulsiona e motiva, pescando pequenas pérolas das conversas alheias, desgarradas frases que o acaso vai plantando nas mais variadas pronúncias e falantes, enunciados que entretecem a malha significativa do momento imediato, inaudita até então, sentenças e expressões invisíveis e desnotadas antes ainda porque já ouvidas, ou mesmo que anteriormente ditas e escutadas terão passado a leste da acuidade, seguindo diretas para o esquecimento e apagadas para que outras lhes sucedessem de igual calibre e quilate, garantindo o lugar e primazia às atuais capturadas, presas e troféus dum veterano caçador de recompensas sempre pronto a torná-las reféns da sua vontade de renovar, e reciclar, o conteúdo do gavetão dos analíticos e lexicais discursivos, com exemplares indesmentivelmente originais e inéditos.

Sobretudo porque nessa entrega ao significado de cada uma das recém-captadas, enquanto frases comuns e insuspeitas que alcançaram o Olimpo da particularidade incomum da genialidade criativa, nesse trotar de sílabas gregárias na mecânica dos ouvidos pelos paralelos molhados do calçadão dos enigmas e mistérios, nos adensamos na semântica das horas breves e fúteis, tornando-as úteis e prazenteiras, industriando a alquimia de tornar precioso o que antes fora vago, ordinário, vulgar e medíocre, concedendo-lhe alforria e estatuto de insubstituíveis, quando notoriamente corriqueiras e descartáveis anteriormente seriam, por mais bem-ditas e pronunciadas que tivessem sido de acordo com os requintadíssimos superlativos da dicção.

Portanto, entrincheirado na leitura do diário matutino segui de soundbyte em soundbyte, saltitando de comentários para apartes, de confissões para desabafos, de apreciações para argumentos, de conclusões para considerandos, de apelos para invetivas, em velocidade de cruzeiro, em passeio, ladeando paralelo a vitrina e parede desse longo e circular aquário que é o meio-ambiente, o nosso raio de ação e visibilidade própria, varrendo a 360 graus a atividade da flora e fauna fleumáticas da bolha observável, perscrutando a evolução das formas e sonidos, os sublinhados e expressões com propósito de significação, involuntários uns, intencionais outros, de natureza prefixa ou sufixa segundo o enraizado espontaneamente estabelecido. Uns referir-se-iam ao universo da e das políticas, das noticias do Jornal da Manhã como dos acontecimentos do passado recente; outros, às atividades da urbe no fim de semana, às ocorrências da vizinhança, aos pequenos escândalos e comezinhos atalhos nos privados da convivência, às situações e atitudes de familiares, aos serviços e ofertas de cafetaria, e reparos aos afetos e desafetos em geral, mas principalmente acerca dos ausentes que costumavam estar presentes. Ou que ganham hegemonia no presente pela sua ausência.       

Porque na tentativa de absorver a realidade até ao absurdo, o ser humano, como qualquer indivíduo que se apraz pertencer a uma espécie que insiste em ser distinta das demais, mas suficientemente numerosa para consignar às diferenças entre si essa mesma distinção, por grupos, ficheiros, tipologias, conforme o cariz das avaliações, quer elas sejam elaboradas por empatia como por estranheza, por compreensão e semelhança, como por aversão à matriz, contraste ou intolerância, não se coíbe de recorrer à clandestinidade, ao disfarce, à infiltração, ao subterfúgio, para melhor conseguir a dita apropriação do real, quer social, como pessoal e circundante, ainda que este seja exemplo incontestável de uma ficção ou conglomerado de ficções, teorias e delírios místicos. E, com os olhos visivelmente ocupados na decifração alfabética, os ouvidos ficavam-me totalmente livres e recetivos à absorção de todo e qualquer estímulo sonoro passível de descodificação que ocorresse, distinguisse, discernisse entre as mensagens flutuantes as que, por natureza, relevância e consistência, eram propícias ao investimento analítico. Aliás, fora na mira de tal operação que ingerira a cafeína depois do substancial e nutritivo pequeno-almoço que tomara em casa, e que me concederia todo o tempo do mundo para dedicar-me em exclusivo à tarefa da perscrutação, sem pressa, sem ansiedade, sem sofreguidão, ou restantes causas que nos levam a entrar pelos atalhos inimigos da lucidez: precipitações.

Por conseguinte, ali estava eu como se sempre ali estivera, plantada peça de decoração ou móvel da casa fosse, enraizado de pedra e cal, embaucado e de matutino em riste, resguardado de congeminações e alusivas considerações adversas, recatado, pronto e sadio prà função, recetível ao dito, disponível e atento prà frase que soasse e viesse, viesse como viesse, misturada ou sem ruído, embrulhada ou despida de qualquer ganga marginal, límpida ou obscura, com ou sem preâmbulo, com ou sem epílogo, com ou sem rótulo, prestes a consumir com sucesso e galhardia um oitavo da vida, que se resume sempre à terça parte dos 12 avos que o carnaval é. À esquerda, à direita e em frente ninguém suspeitava das intenções reais perante a coreografia do momento, acaso sobre acaso dispostos sem ordem nem objetivo definido, tudo espontaneidade simples, pura e dura, desprovida de intencionais arranjos, à flor do ar e fluida e plástica e flexível e moldável como a primitiva argila da nossa essência gregária.

«Tenho que ir fazer análises», afiançou a quase-idosa mesmo ao lado, da terceira mesa prà direita, assim mesmo à babugem do orelhame, «pois o meu filho diz que quando nos doem os pés, é porque temos o colesterol elevado… E a mim têm-me andado a doer ultimamente; parece que vou sempre a pisar gravilha quente, Gracinda», que era a companha que a escutava, embora aparentemente mais nova e bem-conservada, e que, de frente para a falante, mexia-mexia-mexia-mexia o café como se temesse que o dito coalhasse, talvez esquecida do que fazia, abstrata, e com aquele semblante de quem viaja por outras paragens que não aquelas onde deveras está. De gestos automáticos, mecânicos, tipo máquina de operações repetitivas a que se esqueceram de desligar no interruptor, e que só pararia quando a pilha descarregasse totalmente.

Mais adiante, e do mesmo lado, entre os assíduos ou habitués e os fumadores, que foram literalmente empurrados para os fundos, próximo da porta das traseiras, marginalizados, qual retaguarda da direita conservadora do lugar, dum casal de meia-idade que parecia ser igualmente de meias-posses e de aprumado mas já percetivelmente usado vestuário, após pousar os sacos das compras no supermercado vizinho, reparou ele que «nesta cidade nunca há nada. Mas quando há, ninguém vai… Viste ontem quantos estavam a assistir à música no coreto? Eram mais os tocadores da filarmónica, dos que a ouviam de fora», puxando uma cadeira da mesa atrás para ajeitar melhor um saquinho. «Pois é», assentiu ela, «e os que vão são sempre os mesmos. Só lá vi gente que esteve anteontem no museu, a ouvir o coro.» «Se calhar são da mesma capelinha que promoveu a gaitada» anotou o parceiro. «É sempre assim: promovem o evento, atiram os foguetes, e ainda são os mesmos que vão apanhar as caninhas. Seja o que for» garantia, e dando-me a oportunidade de confirmar como nas parcelas do território onde imperou o latifúndio e o condado, o acerto senhorial e a grande propriedade, a marcação do gado extravasou das unidades de produção pecuária para a esfera social, para a mentalidade urbana, corporativa, mais ou menos cosmopolita, efetuando essa transferência por meio da metonímia e da metáfora, que são os tropos mais recorrentes do pensamento mágico, numa modalidade simplista da regra dos três simples: se fulano tal frequenta o pasto da casa tal, então tem a sua marca, o que lhe permite frequentar todo e qualquer pasto da mesma casa. Precise ou não, goste ou abomine. A coisa não é grave, ainda que primitiva e secular, e não é caraterística desta ou daquela terriola em especial, antes está generalizada de alto a baixo do retângulozinho portuga, nele constatável e visível, senão transmissível de geração para geração sem qualquer esforço ou sacrifício.

À esquerda, não distante nem revolucionária, mas também não imediata, dois idosos – inequivocamente avançados na idade – e uma senhorita razoavelmente muito mais nova, bem-conservada e sadia, porém visivelmente alheada da conversa, como quem já conhece a cantiga de cor e salteado e lhe dispensa o remake, ou está cansada de dar para tal peditório, e lengalenga, avaliavam as perspetivas de êxito da Feira das Cebolas, efeito muito considerado e frequentado noutros tempos mas a que os hipermercados estouraram com as habilidades, aventando um deles, o com óculos castanhos de massa e lentes grossas, ainda muito bem encabelado, por sinal, com pelos espessos e fortes, cerdosos, luzidios e prateados, que «se não chover durante estes dias, vão-se vender aqui umas toneladas boas de cebola, lá isso vão… sobretudo à noite, que é quando o pessoal que trabalha pode vir. Que trabalha e pode comprar», e piscou o olho sabido para o compincha. «Isso, sim!... Antigamente, era aqui que a minha gente comprava cebolas para todo o ano, era. Mas agora, vai comprando conforme lhe vão fazendo falta. São mais baratas, e não lhe apodrecem. Também são mais rijas, principalmente as espanholas… Mas são cebolas na mesma, e ninguém lhe mete muito o dente em cruas!»

Este último, careca mas armado de óculos metálicos e lentes progressivas, que refletiam a claridade da rua sempre que abanava a cabeça, que devia ter sido comerciante antes de se aposentar, de frente para a janela, avaliando com preceito de negociante como de político, adiantou ainda que «naquele tempo justificava-se, e dava um jeitão. Mas agora, não. E fazer esta feira, é promover a fuga ao fisco, oh, se é! Durante estes dias vão passar de mãos quilos e quilos de mercadorias, e nenhuma vai pagar IVA nem averbar fatura!»

«Eh-eh-eh-eh! Bem lembrado. É que nem ginjas!», redarguiu o primeiro. «O mais engraçado, é que é um órgão público, uma autarquia, a câmara municipal a instigar à fuga ao fisco, essa é que é essa!»

«Ou seja: a expensas do erário público, organiza-se e promove-se um evento onde o capital circulante vai todo parar à caixa 999999999999999. E tanto faz estarmos em crise, como não: faturas viste-as! O IVA delas, das cebolas, batata. Vai lá IVA, lá vai! Este ano o valor de contribuições estimáveis da atividade da economia paralela, só ele, pagava a nossa dívida à TROIKA: 45 milhões de euros. E a câmara? Pois.»

«Isto é tudo a mesma cambada… Carregar nos velhos, nisso estão todos de acordo. Agora, fazer o que devem, só fazem se for decretado pelo partido deles. E nunca é, que a maioria só tem partido, quando precisa dos favores de algum dirigente. Se precisa, filia-se, e paga as quotas. Se não precisa, procura outro. E ele há tantos! Depois no governo, só há gaiatos…»

«Gaiatos uma pinóia, que gaiato fui eu e aos oito anos já trabalhava desde o nascer ao pôr-do-sol, com o meu pai e os outros homens na padaria do meu tio, e mal pago, que ele era sovina com’às cobras. Fazia cá falta era outro Salazar. Havias de ver como aprendiam a marchar certo e direitinho!», sentenciou o bem encabelado, mostrando o branco dos olhos para sublinhar o vaticínio. Mas a moçoila que os acompanhava nem reparou no trejeito, e fez o ponto da situação, que, conforme esperava, foi ratificado por ambos: «Eu já bebi o café, e vou ali ao supermercado aviar a lista. Quando me despachar, venho aqui ter, ok? Não saiam daqui, senão faz-se hora de almoço, e a gente não chega a tempo.»

Eles que «sim filha, vai descansada». Mas, embora os dois tivessem anuído ao mesmo tempo, com a cabeça para baixo e para cima, apenas a voz do segundo se ouviu, talvez a dar a entender que era o mais civilizado e citadino de ambos. E notava-se, pela modernidade dos acessórios, e pela falta de cabelo, a que o pentear quotidiano e lavagens foi tirando força e número.                      

Nada há que seja simples nesta vida, há é olhos rudes e espíritos tacanhos que não conseguem enxergar a riqueza sútil e intrínseca dos pormenores dum detalhe, é a premissa que supervisiona a atitude de quem se considera observador de mão-cheia, quer dizer, de olho vivo e raciocínio sagaz, expedito, porém não nos devemos esquecer que o perfeccionismo e a acutilância no detalhe também leva à dispersão dos intentos, vendo ele tantos pormenores, muito facilmente esquece o fim maior a que se propusera. E é lógico que assim seja, como o confirma a prática, porquanto nesse ínterim eu já nem fazia o menor gesto de disfarce, entregando-me de corpo e alma, por assim dizer, à única tarefa de escutar, talvez mesmo pondo a cara à banda para melhor ouvir, descuidado, e nas tintas para que reparassem na minha curiosidade ou não. Ser apanhado em flagrante não seria grave, uma vez que todos e todas o fazem; mas chamaria a atenção dos clientes da casa, pondo-os de pé atrás quanto ao cromo e suas intenções, o que diminuiria a fidelidade e nutrientes das falas, como dos seus conteúdos. E eu queria algo vivo e substancial, pelo que virei duas ou três páginas do jornal, destaquei o suplemento, folheie-o, sublinhei dois itens da programação televisiva. Fui ao balcão buscar mais uma garrafinha de água. Perguntei as horas ao barman. Tudo coisas normais, e que poria quem quer que fosse a espantar a pulguinha de detrás da orelha, se acaso lá se tivesse instalado.

As falas são o que são, bastantes trazem ruídos e mais barulhos à volta, é certo e sabido, e para as despirmos dessas gangas temos primeiro que concentrar-nos neste ou naquele timbre, desligar dos demais, para lhe discernirmos a suculência. E das bandas dos fumadores, três ou quatro raparigas faziam-se notar pela vivacidade das expressões, bem como pelo rir descomplexado e metálico, sem ser estridente todavia, que emitiam. «Eh-eh, põe lá isso onde estava. Então não foste tu que disseste ontem que ias deixar de fumar?»

«Fui. E já comecei: hoje já nem comprei. Vou fumar só à crava. Quando não tiver a quem fazê-lo, fica cumprida a promessa!», esclareceu a interpelada, uma cachopa cheia de carnes e cores, bem nutrida e sem-papas na língua.

«Espertinha… Não tens piada nenhuma» glosou a primeira que falara, dando um safanão ao cabelo castanho claro, quase louro, comprido, que espanejou o ar em redor como uma crina de inquietude. «Hoje vemos o jogo, à noite, no sítio do costume?»

«Vemos», respondeu a terceira, fazendo um Yes com o braço direito, de punho fechado, braço dobrado e de cima para baixo, com quem faz um afundanço de cotovelo. «Nem podíamos faltar!»

Claro que podiam, pensei. Se faltam às aulas para vir prò café, muito mais facilmente podiam faltar a um jogo de futebol transmitido pelo canal desportivo, num estaminé qualquer como aquele em estávamos, senão precisamente nele. As calças de ganga, agarradinhas às pernas, e a saltar a ribeira, desenhavam-lhe as formas, que suspeito serem só febra de saudável têmpera. Cabelos castanho-escuros, face abonecada, olhos de sevilhana, amendoados, quase negros e destemidos. Quis-me parecer que seria a mais calma das três, mas errei no palpite redondamente. Porque, tendo tocado o seu telemóvel, ei-la que se levantou num ápice, e atravessou o café para ir atender no exterior, como se estivesse numa passerelle, dando à anca e fazendo trejeitos de quem desfila perante seleta plateia, gingando sensual, o dedo indicador da mão esquerda nos lábios a fazer biquinho, destilando coqueteria nos esgares à direita e à esquerda como Lolita sabida. Tive pena de não poder ouvir a conversa ao telemóvel, que prometia ter sido fogosa e folgada, sobretudo porque quando regressou, passado algum tempo, trazia aquele brilhozinho nos olhos de que fala a canção do Sérgio e o rubor nas faces de quem viu passarinho novo.

No lado dos fumadores, mas na fila oposta à das cachopas, um trabalhador da coisa mental, afanava-se com desembaraço e empenho, fazendo contas numa pequena calculadora, cujo resultado anotava numa folha Excel. Deduzi que fosse contabilista, mas depressa arredei a ideia. Creio que era antes professor de gestão ou disciplina próxima, talvez da escola de hotelaria e turismo, ou mesmo da de tecnologia e gestão, e que preparava alguma aula ou exercício para os seus educandos. Fato aprumado, azul-escuro, camisa creme e gravata verde-acinzentada, corte de cabelo à executivo e óculos dourados de aros retangulares, parecia ter sido recortado de uma revista de marketing e relações públicas. Impassível, sem a mínima expressão facial, consultou duas ou três vezes os livros que tinha ao canto da mesa, bem arrumadinhos, um sobre o outro, cantos com cantos em simetria perfeita, e, metodicamente também, anoto-os aqui e ali, copiou algumas passagens para a margem da folha de cálculo, fez sublinhados (que deviam ser retos e exemplarmente esgalhados, mas que não pude ver pela distância que nos separava).

Entretanto entrou uma sujeita que tinha tudo para ser uma dama das camélias, mas como os tempos mudaram, ficara incompleta. Bem-vestida, mas sem coerência de conjunto, rendas e folhos, saia travada, saltos altos, mala de mão, lenço rameado na cabeça, e que foi direitinha ao lado dos fumadores. O maço era comprido, e os cigarros, branquinhos com filtros cremes, miúdos e delgados. Fumou um com ansiosa pressa, em aspirações prolongadas e expirações em picotado, expelindo em duas ou três porções o fumo que engolira só duma vez, foi ao balcão buscar o café, fumou outro com mais calma e, ainda mal o tinha terminado, acendeu um terceiro que, esse sim, foi já não como quem ingere sofregamente algo que lhe faz falta, mas como quem fuma somente para ver expirar o tempo, evoluindo numa ténue espiral cinzento-azulada até ao teto.

Foi então que olhei o relógio de pulso. Passavam dois minutos da hora do autocarro. Havia-o perdido, e teria que esperar pelo seguinte, que passaria daí a três horas. Além do café, da água e do jornal, que perfaziam uma soma de 2,50 €, ainda ia ter que almoçar fora, coisa que nunca ficaria por menos de 8,00 €. Despesa desnecessária. Inútil. Não programada, nem figurara no meu planeamento inicial para o dia. E, tudo isso, porque caíra na expetativa de que as melhores frases e tiradas literárias, não são as que inventamos com propósito explícito e sobreaquecimento das celulazinhas cinzentas, mas as que vêm ter connosco por acaso, enquanto estamos que nem esponjas ou plácidos batráquios a ver voar as libelinhas. Pufff! Qual nada, a realidade só é frutífera quando queremos reproduzir outra realidade inferior a ela, pois que, se pretendemos criar uma ficção, só quando nos alimentamos também de ficção o resultado é rentável.

Não me posso conformar… Gastei eu um dinheirão, perdi tempo que jamais recuperarei, e o que consegui? Nada. Trinta parágrafos de ninharias que, se bem espremidos, não valem a traição dum poeta num verso que capturou a um poema esquecido e antigo que encontrou numa coletânea ou almanaque do século XVIII. Tenho que deixar-me disto, ou ainda acabo por ser publicado por alguma editora de best-sellers e títulos de autoajuda. Enfim, errar é humano, mas perder tempo com saloiadas é desperdício de talento!                          

  

O DIABO DE BURRO



O DIABO  DE  BURRO
                                                                     
                                                                        Por
                                                                            JOAQUIM CASTANHO

Quando cheguei a Casal Parado, vindo de uma capital de distrito, não conhecia cá ninguém. Nem sequer aquela que viria a ser a minha hospedeira.
Mas a tropa manda, e aconselha no desenrasque!... E, mais ou menos porque à força de nos encontrarmos em idênticos sítios pelo igual da hora, criamos parceiros para o jogo dos grupos no parcelamento estrutural da sociedade – o que é um contrassenso , ou nos damos como cúmplices uns dos outros em pecados imaginários e futilidades menores, para que possamos preencher a solidão pelo custo da sua hipoteca – a esperança. O certo é que, sem sentirmos, nos vamos enraizando juntando-nos a outros desenraizados que normalmente nos acolhem, mais por necessidade de sangue novo no seu antro, do que por solidariedade. Que foi o caso.
Profanado por uma trindade que nada prometia em troca de coisa nenhuma, e sujeito a esse abrigo que é o (imaginário) chapéu de chuva como único recurso de defesa contra a tempestade do “dum lado chove, do outro faz vento e o chão é um rio pegado”, que é a nossa capacidade de adaptação a novas situações e meios, enquanto genuínos portugueses, e querendo romper a indiferença pelo menos numa dessas três frentes (e a saber: os casalenses, os não-casalenses e o grupo tertulino do café), vi-me metido numa confusão que foi obra!... E de que saí ileso e sem beliscadura de maior na moral e amor próprio, porque o acaso e inconsciente, que são os únicos sábios que conheço (para além do tempo) e reverencio desde que Atenas foi romanizada, vieram em meu auxílio e ditaram as sortes que nem por encomenda e duma só assentada. Canja!, foi o que foi – ó larilas!...
Éramos, ao todo, naquela tarde chuvosa de Outono a brincar ao Carnaval e disfarçada de Inverno, seis ou sete em volta da comum mesa, no Tonel Bar, frente a insinuantes garrafas de sinuosas bebidas (pelo cerealífero efeito). E inspirados em carpir a derrota de qualquer dos clubes desportivos que tivesse perdido na jornada do fim-de-semana passado, independentemente de ser ou não o das nossas preferências e simpatia. Que isso de uma desgraça nunca vem sozinha, e já que o nosso perdeu, há também sempre outro que lhe igualou o feito, que se bem lamentado e com ênfase, pode até parecer que a derrota do nosso clube foi uma coisa de somenos se comparada com a cabazada desse, além de inesperada, numa superstição pedagógica, e como que a dizer-lhes (aos jogadores e técnicos) que se a intenção deles, em perderem tão ostensivamente, era ferirem-nos e humilharem-nos, não conseguiram de maneira nenhuma, pois que se querem alcançar algum êxito nessa direção e sentido, em surpreenderem-nos!, o melhor que têm a fazer é inverter a tática: ganhando!... 
O Vicente, motorista de autocarros de passageiros; a Adélia, messalina do nosso contentamento, e professora do ensino secundário; a Ana Teresa, funcionária pública e namoradeira em rotatividade; o Augusto, agricultor e vinicultor, novo empresário, e, por sinal, de entre os demais, o único residente e autóctone; o Dinis, enfermeiro; a Almerinda, empregada de escritório num gabinete de contabilidade; a Francisca, professora primária; e eu, este vosso e fiel servidor. Aio e escudeiro nesta e outras cavalgadas. Eis os quantos, por rotina ou falta de família na localidade, fizemos do café a salinha de estar que os nossos frios e bolorentos quartos não conseguiam ser! E mais ainda: os que em desespero de causa se forjaram numa companhia onde muito superiormente se toleram do que se aceitam.
Pois, sendo eu a aquisição mais recente, e recenseador do INE (Instituto Nacional de Estatísticas) por excelência, com uma modernidade de dois meses e piques, e sobrecarregado por uma volumosa bagagem de timidez acumulada, embatucava frequentemente e deixava que a conversa corresse a expensas dos mais velhos e expeditos. Em resumo, a minha participação no grupo pouco ia além duma futebolada aqui, umas observações sobre o tempo acolá e umas quantas respostas empacotadas em tara perdida, concisas e económicas, ao perguntarem-me o quer que fosse. Se solicitado era lesto na réplica, não por boa vontade ou espírito prestativo, mas sim porque quanto mais rápido respondesse, mais depressa me deixariam em paz ou as atenções deixariam de recair sobre mim. Uma espécie de fuga para a frente.
Aliás, ao grupo, essa minha evidenciada tendência para bicho-do-mato, parecia não incomodar; antes pelo contrário, agradava imenso. É que o comedimento, modéstia e discrição, facilitavam sobremaneira que quem queria e gostava de brilhar, o pudesse fazer, e brilhasse. O que é normal e naturalmente lógico, ou de plena compreensibilidade: ocupar os espaços deixados vagos é uma forma tão biologicamente saudável como qualquer outra para crescer e evoluir, conquistar e vencer, conhecida até dos mais elementares seres do reino vegetal, quanto mais dos do animal! E eles, ou a maioria deles, faziam-no, com prazer e oportunidade, conforme lhes competia.
Simplesmente, como é pela operação que melhor se conhece a natureza do operador, e pelo ato a do agente, graças à minha inatividade e silêncio, pressentia causar-lhes grandes dificuldades em definirem-me e rotularem-me, e que se o ousavam raramente chegavam a consenso ou unanimidade. Para cada qual havia uma característica da minha personalidade e conduta predominante, mas diferente. Uns que assim, outros assado, aqueloutros cozido; no entanto, com muito pouca convicção. Do que resultava nenhum resolver-se por veredicto certo e seguro.
Até que o inolvidável aconteceu. Um dia, estando eles em amena cavaqueira, ao regressar dos meus afazeres estatísticos, desemboquei na mesa razoavelmente eufórico e se não comunicativo. Olharam, todos e à vez, para mim, com ar de caso e espessa interrogação a pender-lhes dos narigões, que nem ranheta outonal de constipação mal curada, e, sem mais nem aquelas, disparei-lhes à queima-tímpanos:
«Já não morro estúpido.»
«Hãn?! O quê?!» Admiraram-se uns e outros, sem que se saiba ao certo quais fizeram “hãn” ou quais fizeram “o quê”, para manifestarem a sua surpresa. 
Então, para melhor gozar o prato, insisti:
«Isso mesmo. Como eu exatamente disse: estúpido é que já não vou morrer», e sentei-me entre o Vicente e a Almerinda, que, como é óbvio, abriram a respetiva ala.
«E porquê?», inquiriu a última.
«Ora! Porque hoje vi, na estrada de A-dos-Tansos, uma coisa que nunca pensei possível, e muito pouca gente há de ver ou já viu!...»
«Mas o que foi?», quis saber o Augusto, reforçando a questão posta pela curiosidade da Almerinda.
«Vi o diabo montado num burro a galope», afirmei eu, sublinhando bem cada uma das letrinhas em causa.
E o dito caiu que nem aguaceiro primaveril. Primeiramente, e pela globalidade, se calaram e recolheram em suas conchas de abrigo à mudança; mas logo que passou, e se refizeram das nuvens da estupefação, saíram a terreiro em chilreio tal de querem falar todos à uma, que as vozes, não fosse o meu longo treino de silêncio tímido e à escuta, se confundiriam e se tornariam indistintas, nos seus falares de mim como se eu ali não estivesse, ou nunca ali houvesse estado.
«Estou em crer», tentava imperar a Ana Teresa, à minha frente, «que estamos na exemplar presença da esquizofrenia típica. Hoje viu o Diabo, amanhã vê Deus; se não o dois ao mesmo tempo, e à bulha. Li em qualquer lado que é precisamente isso que caracteriza tal moléstia da psique: o assistir à luta mortal entre seres supremos e contrários, personificando-os e acreditando que lutam pelo espólio que significa aquele que assiste. Que é por causa dele que se debatem. Da sua alma. É uma distorção autista e fantasmagórica da realidade. E bastante evidente se relacionarmos a sua tendência para ficar calado entre nós, num mundo só dele, bloqueado e a funcionar por caprichos, dum modo artificial e amaneirado.»
Mas o Augusto, com aquele sentido prático e de desconfiança, que lhe deu a vida da terra, considerava que não.
«Isso não pode ser», vociferava. «Não me venham cá com lérias. É mas é uma grandecíssima mentira. E ele está mas é a gozar connosco», adiantava retumbante e rotundo, a olhar-me de esguelha, e exibindo gestos com as mãos, bastante indicativos do que tinha vontade de me fazer, caso não fosse atender aos presentes e local onde nos encontrávamos.
«Cá pra mim, ou é droga, ou vinho a mais», retrucava o Vicente. «Tive um vizinho que lhe aconteceu o mesmo. E eram as duas coisas em simultâneo!... Tanto se encharcou e pedrou, que começou a variar da moca e passou a ver coisas escaganifobéticas de alto lá com elas!... Às vezes estava a conversar muito bem com a gente, e sem que ninguém esperasse ou percebesse porquê, punha-se a dizer baixinho: Está quieto. Não te mexas... Nem digas nada. Que está o incrível Hulk por detrás de ti. Deixa-o passar... Que nunca se sabe o que é que ele pode fazer!... E depois voltava, num repente, à conversa que estávamos a ter.»
«Ná!... Essa não me convence», argumentava a Almerinda. «O que aqui está claramente visto é uma manifestação de recalcamento inconsciente, uma realização simbólica e mascarada, a conversão somática de desejos inaceitáveis pelo fulaninho, e de natureza edipiana. É histeria pura. É neurose de elevado grau. Então não veem o comportamento dele? Característico de uma crise de identidade em estado avançado e evidente, de confusão verbal e mental, o desdobramento da personalidade, o histrionismo, a sugestibilidade, a pobreza de afetos, o medo de se expor, de falar e de confiar em nós, a introversão rígida e caraterialmente deformada?... Como podem dizer barbaridades de uma pessoa que apenas está doente!...»
Eu queria atalhar e defender-me. Dizer de minha justiça. Mas eles não mo consentiam. De tão preocupados que estavam em resolver o busílis, nem queriam saber da minha existência, quanto mais das minhas razões ou os pormenores da sucedância. Estavam na elaboração de hipóteses, fabricação em pleno contínuo, e, se algo eu pudesse vir a dizer, certamente lhes não seria útil àquele ponto da refrega. Talvez lá mais para o tarde isso fosse possível, ou quando passassem às fases da experimentação e verificação me quisessem ouvir!... O que para mim se apresentava como uma hipótese esperançosa, embora que remota, de vir ainda a salvar a dignidade, a integridade, a sanidade moral e psicológica, já então de rastos naquele vaivém de gestos e contra-argumentações, qual festival de artifício a que acossado assistia, com medo de mexer-me por mor de assim poder piorar as coisas, e em que me limitava a tentar ver e ouvir o mais atentamente que me fosse dado, o orador que ao momento fazia uso da tribuna, se afirmava, com redobrada convicção e empenho.
Por outro lado, Dinis opinava:
«Esse gajo sempre funcionou a ritmo delta, não foi?!... E daí que agora a falta no mexer-se se agravou: além de funcionar mentalmente às três mudanças tradicionalmente lentas (devagar, devagarinho e parado), tudo indica que também se deixou apanhar pelo síndroma de Korsakoff. Tiro e queda. Se não, como definir o estádio de confusão mental, a confabulação e os falsos reconhecimentos? É que nem ginjas!...»
Contudo, Francisca, não radicalizava tão descaradamente. Ou porque o maternalismo latente se tornava saliente; ou porque da profissão nos fica aquilo que à vida mais simplifica.
«Estou em crer» achava ela, «e com bastas e fortes razões para essa crença, pois sei do que falo!, que aquilo com que nos deparamos, mais não é que outro manifesto exemplo da muito premente necessidade de atenção e afirmação, talvez com regressão infantil, acompanhada e desmultiplicada por uma imaginação extraordinariamente fértil. Provavelmente até delirosa, mas que ainda se não tinha revelado porque a nossa acuidade tem andado dispersa e solicitada por outras atitudes e comportamentos, ou por outras personagens extraordinariamente fantásticas e igualmente absorventes, esquecendo-nos nós, e descurando, aquelas que nos estavam mais próximas. E isso fez com que não notássemos a sua crónica tendência de alucinado para o delírio, para um delírio porventura palingnóstico, que compreende elementos de fabulação com falsos reconhecimentos e uma hiperexpansividade imaginativa, por um lado; e para um delírio de imaginação, por outro. E que – não sei se se lembram da maneira sobrevalorizadora com que há uma semana atrás nos falou da grandiosidade e riqueza da sua família!... – é fundamentalmente caracterizado pela predominância da imaginação na sua origem, permanentemente enriquecido e com temas preferenciais que orlam a mitomania, a filiação, erotomania e a megalomania. Além de outras taras, sem dúvida.»
Bem vistas as coisas a minha sentença estava lida: no mínimo dos mínimos, davam-me o estatuto de maluco. Sem retroativos nem ajudas de custo. O que, diga em abono da verdade, não era nada que desse azo a profícuas gabações e orgulhos. Ou era?! A reputação que calculava ter, e quisera criar à força de muita ponderação, teimosia e discrição solícita e atenciosa, estava a ir por água abaixo, e, pior ainda, a arrastar-me com ela. Porque a vida tem destas andanças, onde e quando nunca se sabe no que elas poderão vir a dar!
Tentara interferir diversas vezes para esclarecer o que se tinha passado em A-dos-Tansos terra em que avistara o inominável dito cujo em cima de um burro a galope. Mas vai lá, vai!... Compenetrados e empenhados que estavam na imposição de seus veredictos, assim que abria a boca, logo outra voz mais sonante e timbrada apagava a minha, fazendo-a passar, num golpe, de fala de gente a ruído de fundo. E, aquilo que a princípio não era mais do que uma situação cómica, começou a ser drama com sérias tendências de evoluir e transformar-se em tragédia. Sobretudo para mim, que era quem estava a entrar em pânico, quase a raiar as fímbrias duma aflição sem apelo.
O que não era de menosprezar. E iniciava a levedar. Até porque a minha timidez e vergonha de falar em público persistia em tomar conta do meu comportamento, e a imperar sobre a necessidade salvar o meu amor-próprio duma derrocada derradeira, aí sim com muitas e fortes probabilidades de lhes dar razão e cair numa de identidade deveras supérflua e indesejada. Porque essas fatalidades não são como o totoloto ou lotaria, que sempre e exclusivamente saem aos outros, mas pelo contrário, é infalivelmente em nós que com superior força carregam, ainda que sejamos quem menos as merece.
Mas eis se não quando, em desespero já, e pensando convictamente que o melhor seria levantar-me e sair para nunca mais, enquanto vivo fosse, e deixar de frequentar tal bar e convívio, ou voltar sequer a Casal Parado, entra oportunamente um indivíduo, estudante num curso em regime noturno, que sabia a residir em A-dos-Tansos. Não hesitei. Chamei-o alto e bom som, determinado e imperativo:
«Ó amigo: ouça cá!!»
E ele veio. Para ouvir. Cá. E que era ali, na mesa a que nos encontrávamos.
Os demais, em redor, calaram-se. Finalmente. E quedaram-se com aquela cara de cu à paisana que geralmente antecipa a pergunta: “ O que sairá agora?!... “
«Não há, em A-dos-Tansos» perguntei-lhe eu, «um burro cinzento, altote e magricela, cujo dono ainda o utiliza para se transportar, amanho e trazer de espécimes da fazenda?»
«Há sim.» Respondeu o interpelado, confiante, feliz por encontrar alguém que lhe dirigia a palavra e o ajudasse a passar o tempo, no que a este faltava para o começar das aulas. «É o do ti’ António Diabo. Aind’agora o vi nele, quando regressava dos talhos.»

Eu, respirei fundo e fixei olhos nos olhos a cada um, e à vez, dos meus compinchas. Um olhar que era de superioridade mais do que desafio, com a respetiva legenda de “ vejam, eu não vos tinha dito “. Estavam arrumados e abatidos, e quase me pareceu ouvir ranger engrenado de reajustamento dos seus processadores de justiça e moral, ao serviço da peculiar lógica de quem vai de caminho. E aos tombos.   

DIZER A ETERNIDADE



DIZER A ETERNIDADE

                                                        Por
                                                        Joaquim Castanho

A maior e superiormente imediata (ou derradeira) das aventuras começou sempre pela palavra. Incluindo a civilização ocidental e judaico-cristã. Da qual é exemplo o antropocentrismo humanista, conforme o registo bíblico, em que afirma categoricamente que ao princípio foi o verbo. Mas o verbo de então, claro está, e não o de hoje, que era palavra, e atualmente é ação. E nessa gramática, universal todavia, tudo o que é humano só se conjuga, se inicia factualmente e se torna realidade quando, enfim, se nomeia, verbaliza, define, invoca e convoca. Nunca antes. Pelo que nomear é, assim, e indubitavelmente, o primeiro formato de existir de que tivemos e somos notícia. E tivemo-la, quer por génese oriunda de nós mesmos no diálogo de nós mesmos connosco, quer tenha vindo do exterior, por acaso ou estudo, partilha ou apropriação indireta, passiva ou ativa, segundo a consideremos, ao reconhecê-la, numa tomada de consciência que classifica a racionalidade da espécie, ainda que não lhe identificando qualquer particularidade digna de nota. As mais das vezes esse ter não foi além da confluência de ambas as vias, que de paralelas em oblíquas transformaram suas rotas para um destino global – o nosso. Ou seja, logo que a conhecemos, reconhecemo-la, e, ainda que nova já não nos foi estranha, se assim se pode dizer.
Portanto, a minha aventura és tu, mas por interposta condição. Penso «Mariana» e aconteço.
Há nomes que são verbos, são ação, ou agem sobre nós com impacto e movimento, que nos podem deixar transidos, impávidos ou arrebatados. Quando me sucedeu notá-lo, à influência de teu nome em mim, quero eu dizer, nem sequer andava à procura de ninguém, dum sentimento e afetos especiais, em desespero ou carência, nem de qualquer outra ocorrência que me subtraísse o tédio de existir ou de estar, à solta se compreende, entre os demais e emparelhados mortais familiares e vizinhança, a quem a neofilia normalmente ataca manifestando-se em diversos graus de stress e ansiedade. Não. Limitava-me a sobreviver, sem expetativa nem hipoteca de maior, providenciando o meu bem-estar e qualidade existencial tranquilamente, com o savoir faire e galhardia que carateriza quem sabe que a seguir a um dia vem logo novo dia, e não vale de nada apressar o tempo nem assoprar o barco, pois nem o rio corre mais depressa ou a embarcação ganha maior velocidade. Limitava-me a conviver com a minha febre de existir, sem demandas nem achaques, exigências ou concessões gratuitas à ânsia e excitação além daquelas que qualquer vivente tem pelo simples motivo de respirar, e entende como a energia, se provoca movimento, este também gera energia, nem vê nisso o menor paradoxo.
Mais tarde soube que «Mariana» não era um nome qualquer, que tinha a sua dinâmica intrínseca e própria, resultante da circunstância de aglutinar outros dois nomes: Maria – que significa «Jovem»; e Ana – cuja tradução, desde os remotos e antigos ditames da onomástica, convencionámos significar «Mãe». Jovem Mãe, ou nem menos que a descendente direta da Grande Mãe, Inanna, a mãe primeira e primordial da humanidade. A filha da avó…
Porquê? Porque existir só é viver quando ganha sentido. Quando estabelece uma inegável ligação entre os dois únicos lados do tempo: o passado e o futuro. Essa é a religião do agora, do presente, o elo que atribui continuidade à antifonia original e perfeita. Daí que te nomeie mal a dúvida, a incerteza, o descrédito me aflore. Daí que o faça igualmente se o júbilo, o entusiasmo, a felicidade me visite. Daí que te invoque por tudo e por nada. Recorra ao nome sempre que tenho muito em que pensar ou fazer, como quando me sobram tempo, disponibilidade e ânimo.
Não raro, ainda!, faço-o em silêncio, como uma prece, amuleto, parte de mim em que toco, tanto por estímulo como por hábito. Por tique como por comichão. Aliás, fi-lo silenciosamente quase sempre, em exclusivo, e até há bem pouco tempo. Por temor. Suponho que, com elevado grau de certeza, por superstição… Temia que, se ousasse pronunciá-lo, proferi-lo amiúde, perdesse a magia semântica que lhe é inerente, o deixasse gasto pelo uso, entrasse na esfera do banal. Como se lhe subtraísse a energia com que me iluminava. Como se descarregasse sentido e arrebatamento por cada sílaba, e ao dizê-la. Recordo que levei anos e anos para perder esse medo. Não totalmente, é óbvio, porquanto ainda o tenho, embora racionalizado. Para isso, a denominada racionalização, contaram as vezes que o disse inconscientemente, que é um sector psíquico de vanguarda, e vai sempre à nossa frente desbravando o desconhecido como carro de combate de piloto automático. Durante o sono. Por outras palavras. Em aflições. Sem o reconhecer ou sem saber que o dizia.
Depois, quando passei a dizê-lo, não o fiz logo de caras. Usei um bordão. Muitos bordões que o justificassem. Tia Mariana, vizinha Mariana, prima Mariana, colega Mariana, e assim por diante… A tia era irmã da minha mãe e que de facto tinha esse nome. A vizinha era realmente uma vizinha minha, como a colega ou a prima, que é filha do filho da minha tia Maria José. E, se tinha álibi, ficava desculpado, não entrava na esfera do receio, do tabu.
Daí, seguidamente, passei a proferi-lo só e só sempre se tivesse outro tipo de acompanhamento, como o apelido por exemplo, ou a profissão, disfarçando-o assim, apagando a “pegada” com eles, espalhando, dissolvendo o receio que a nomeação, a invocação, direta e a seco, me inspiravam. Mariana Lino, Mariana Rodrigues, Mariana Cepa, Mariana Azevedo, Mariana Pinheiro, Mariana Alves, que foram colegas de escola, amigas de café, conhecidas de conhecidos, familiares deles ou simplesmente pessoas com quem me cruzava no dia-a-dia.
Reconheço que não havia qualquer razão para tal medo, e encontrei mil e uma razões para o não ter. Mas uma coisa é sabê-lo, e outra, muito diferente, é perdê-lo… Tinha-o, continuo a senti-lo, era e é mais forte do que eu, determina e condiciona a minha espontaneidade, faz-me tropeçar frequentemente. Nenhum ateu acredita em Deus, certo? Então, se não crê na sua existência, porque é que toma aquele ar compungido e acanhado sempre que entra numa igreja? É deveras ilustrativa para o meu caso, esta imagem… Nada havia que lhe desse tamanha carga de temor e compunção… Nada. Mas como evitá-lo sem esforço suplementar? Pois é…
Podemos considerar a hipótese de ser respeito. Não era. Não é. Respeitar um nome, uma pessoa, é amá-la. É desejá-la, não receá-la. Então?
E até há bem pouco tempo que sempre assim agi. Creio que não vai para mais de dois anos, se tanto!, que consegui dizê-lo – mentalmente é claro – consciente de que estava a fazê-lo sem acompanhamento nem bengala. E digo mentalmente, porque realmente, oralmente, apenas há dois ou três dias.
Parece mariquice… Eu sei! Dispenso comentários. E havia como contorná-lo, como fugir-lhe? Não. Nunca há. Podemos fingir que o ultrapassámos, que o superámos, que o iludimos, que o enganámos. Podemos. Todavia a superstição ficou. Ganhou outras roupagens. Camuflou-se. Do quê? Desconheço. E se o conhecesse deixaria de ser camuflagem… E dominá-la, à superstição, obriga-nos a usar forças igualmente poderosas, superlativas, cujo efeito secundário também tememos. Emoções selvagens, estados primários, motivações pouco esclarecidas, de que nem sempre dispomos ou nos são acessíveis conforme delas precisamos. Podem aparecer ou não. Representá-las, mostrá-las, expressá-las, é uma coisa, mas senti-las de facto não permite o mínimo controlo, por maior que seja o autodomínio do sujeito. Enfim, devo confessá-lo, talvez seja o próprio nome quem mas empresta e concede.
Nunca sinto a mesma coisa quando o digo, mas sinto sempre algo que até aí nunca antes sentira. É o interruptor certo para iluminar locais e sentidos díspares com luz nunca igual.
Portanto, escrevo o teu nome. Sem mais nada. Sem prelúdio, nem epílogo. Apenas ele. Vira de imediato poema. É um vulcão de polissemia.
Se o faço com a maiúscula bem desenhada, vincada, no negritas de descolar os lábios um do outro sem objeção, pondo fim a um silêncio que julguei infindável, ganha a sonoridade gráfica de um chamamento de criança que ainda não consegue pronunciar «Mãe» dizendo «Ma» para chamá-la ou dirigir-se-lhe. Foi um esforço hercúleo, não o nego, como o terá sido para a espécie humana a invenção da linguagem, antes de ter podido recorrer à imitação e ecolalia, antes de reconhecer que era possível não só fazê-lo como também repeti-lo. E escrevi-o olhando céu… tateando o azul sem fim pela janela, de vidraça límpida e plana contra o horizonte, num dia como o de hoje, mas mais luminoso, solarengo, embora nele viajassem inúmeras nuvens, em movimento aceleradamente visível, em direção ao sul. O sol brilhava esporadicamente entre elas, tornando mais brancos os brancos fiapos, iluminando-os aqui e ali, escondendo-se sob eles acolá.
Depois silabei «ri», o “rê” e o “i” com a mesma tonalidade grave de hífen insignificante entre dois sons independentes mas ligados, como convém a uma justaposição que traja a preceito, tipo par que se quer bem mas não admite perder a soberania e individualidade própria, enquanto passeiam pela rua do comércio a ver as montras. Ou botaréu de descanso entre o dentro e o fora, pausa de paradinha antes do remate, antes do passo decisivo, derradeiro que tocará irremediavelmente o destino, o objetivo a que se consagrou. Um «ri» entre Ma e Ana. Entre a maneira infantil e a clareza adulta de invocar o mesmo referente: mãe. Mãe vista pela boca da criança – Ma – e Ana, que é forma adulta, madura e ancestral de dizer «mãe», somente conhecida por quem muito estudou, muito aprofundou a origem e significado das palavras, dos étimos, buscou continuamente o seu significado primordial e absoluto, ousou discernir as originais do seu percurso e trajeto, de há dez mil anos para cá, pelo menos, e de como sempre remanescem nas novas utilizações, quais vestígios do DNA inconfundível no palimpsesto em que habitam. A simbiose da superfície e da profundidade que o mesmo nome encerra mal se pronuncie…
Escrevi-o depois de muito o ter ensaiado mentalmente, num número infinito de vezes, de repetições sempre diferentes, sempre novas, sempre arco-íris de múltiplos sentidos, combinações cromáticas para estados de alma e emoções também sempre diferentes embora que desejáveis e aprazíveis. Para dizer o nome certo quanto não teremos todos e todas errado antes? E errar é sinónimo de viajar sem destino determinado, preciso, definido, importa não esquecer… Nestas coisas do dizer, do revelar íntimo, não há exceções, nem sequer para confirmar as regras. Os nomes são a pele das almas. Sem eles todas são a mesma alma. É ele, o nome, que liberta a alma do anonimato, do ser ordinário, do vivente indiferenciado. E vi-o mentalmente escrito em som mudo e interior, mas já exterior, íntimo mas alheio, anos e anos seguidos antes de o ter realmente escrito na caligrafia do entendimento e da razão, de homem calejado na pronúncia das letras destrinçáveis e audíveis, e lhe conhece a pujança como nome e como sombra dele, reflexo em movimento nas profundas e escuras paredes da caverna da alma e do conhecimento. Só depois é que peguei num lápis e o desenhei demoradamente, com a borracha bem a jeito para poder apagá-lo num ápice se entrasse em pânico ou alguém me surpreendesse na operação. E mesmo assim não o escrevi todo duma vez, mas cada letra em separado, sem qualquer ligação imediata entre si, não como grupo da mesma família, mas como agrupamento que o acaso juntou na mesma linha. Na mesma superfície liza e insignificante. No mesmo empedrado dum piso sem história nem alinhamento discernível. Letras independentes que desconheciam a sintaxe que as havia de unir um dia… Incluindo aquelas que se repetem, os aaa, num triplicado de contagem de partida para uma corrida de alta competição. Um, dois, três – e zás, ei-las que disparam em direção à meta determinada.
Após essa primeira grafia treinei diariamente. Uns dias só em casa, outros também nos transportes públicos, nos hipermercados, nos cafés, nas esplanadas, nas bibliotecas, nos jardins. Continuo a fazê-lo invariavelmente. Creio que é essencial que o faça para o merecer. Pode ser apenas uma horinha, como posso atingir duas ou três somando os pequenos períodos de tempo em que o faço. Cheguei àquela destreza e habilidade que unicamente conseguem os especialistas, que é dizê-lo (mentalmente) ainda que fazendo outras coisas. Sobretudo se estou escutando alguém que não me suscita a mínima atenção, ou suscitando-a me não empenho em dar-lhe tamanha evidência. 
Porque quando te escrevo mentalmente o nome no recheio das horas mastigo os minutos com redobrado prazer, lenta e demoradamente, saboreando a liquidez analógica do tempo como um néctar de excelência. E defino-te sempre com a alma cheia de nós ainda mal despertados, os corpos por desenrolar do enleado da noite, sílaba a sílaba e poro a poro, na sofreguidão desacautelada da mútua dádiva/entrega que nos tornou irrefutáveis. Foi o nosso naufrágio incontinente.
Agora, que já o digo de mim para comigo, se houvesse como dizer-to, a eternidade seria apenas o dia seguinte. Assim, escrevo-to, e ela é sempre a mesma noite, embora repetida dia após dia sem cessar, confluindo inequívoca para cada segundo de ti.

É um tanto esquisito, ridículo, pouco asizado, reconheço… Apaixonei-me por um nome! Felizmente era o teu. 

quinta-feira, janeiro 22, 2015

A CARTA ESQUECIDA

A CARTA ESQUECIDA





“Mas as crianças nascem de duas vozes que se encontram,
e não só de dois corpos (...) – TEOLINDA GERSÃO, in O Silêncio

Se quando uma pessoa se levanta tarde, quer tomar banho mas não tem água, sai à rua para beber café e não há luz, e na esquina entre a residência e a pastelaria lhe cai, vinda das alturas agrestes do plúmbeo céu, à louquérrima velocidade de um meteorito, a larada ocre e esbranquiçada de uma ave em altos voos, sobre o braço de confirmar as horas, ao contorcê-lo nesse gesto do cotovelo em riste a quilhar os flancos ao momento, e lhe esborrata o pulso e o relógio, ou se instala ansioso num banco do passeio público para anotar as desgraças que lhe aconteceram, em apontamento derradeiro e testemunho duma biografia que roçagou as faldas da tragédia, incluindo nos mais ínfimos pormenores, mas não o pode fazer porque se esqueceu da esferográfica em casa, coisa que nunca antes lhe acontecera, reparando enfim nesse instante, contristado, que a equipa de futebol da sua predilecção joga ao fim da tarde com o time rival, derby local ainda por cima, na disputa dum modesto segundo lugar na tabela classificativa, então o conveniente mesmo é este indivíduo ingerir um calmante forte, daqueles que põem sem custo qualquer cavalgadura a dormir, meter-se no quarto, fechado à chave e sem música, sob as mantas e com a almofada sobre a cabeça, até que o clique do calendário retruque os 01 minutos das 00 horas e dê entrada ao dia seguinte, e este lhe traga o consolador esquecimento da data, para que ela jamais se repita, nem sequer na próxima encarnação... Se!
E mais: suponhamos igualmente, que ao preparar-se esse mártir para engolir as pílulas, vai por elas à banca de cabeceira, esviscera as gavetas, em desespero atira ao chão cada caixa vazia, depois de as esmagar, amarfanhar, espremer e espreitar duvidoso o seu interior, ainda com a posologia dentro, mas sem encontrar uma única drageia que tomar, acumulando em si a inaudita raiva da desesperança do fim do mundo, a agonia do descrédito no futuro, sem encontrar absolutamente nada parecido com comprimidos, tampouco uma pastilha para o mau hálito que seja, então que fazer? Sim, que fazer? Sobretudo se esse gajo fosse eu?!... Exactamente: que fazer? – digam-me!...
Portanto, fui. E meti-me, após a desdita que acabei de contar, a dar volta aos papéis, à tralha acumulada nas prateleiras e caixotes, separando uns dos outros sem qualquer critério, embora que disposto a deitar ao lixo três quartas partes deles, e isto a somar por defeito!
Ora, de entre os ditos condenados que ia deitar fora, deparei com uma carta que te escrevi, mas não chegara a enviar-te. Machucada, enrugada, amarrotada, manchada, ditava-te uma infinita lista de queixumes, admoestações, menosprezos, além de evidenciar aquele tradicional amarelecido que o tempo empresta aos escritos esquecidos, e a quem as recordações incutem novo significado. Aquela tonalidade de nostalgia que nos prende ao medo de esquecer. O receio de ficarmos abandonados pelos sentimentos mais profundos.
E não sei como, dei por mim a ver-me novamente contigo. A conversar. A trocar aforismos e sorrisos cúmplices. A falar de livros e de música. A escorropichar jornalismos. A teclar as insondáveis ousadias dos projectos sociais (e pessoais). Enfim, a sentir que continuávamos do mesmo lado da barricada.
O pior, é que também comecei a preocupar-me acerca de ti, quase a desejar a responsabilidade de ter-te a cargo, de tomar conta de ti, cuidar-te, decidir o que te convinha, o que seria o teu bem ou o teu mal... E, principalmente, a ansiar que este nunca te acontecesse. O que é uma óbvia parvoíce, considerando que as superstições, incluindo as de elevado teor de suspeição, raramente se confirmam conforme os nossos desejos. Ou provavelmente outra forma proteccionista e paternalista que encapotadamente assume o receio da solidão, a adestra, a compensa do medo de não termos ninguém para brincar. Há até quem lhe chame solidariedade... amizade, paixão. Outros, mariquice!
Embora nenhuma ciência o justifique e subscreva, é um risco superior às nossas capacidades, admitir que a ternura modifica as condutas. Aceitá-lo, acatar essa possibilidade viciosa dos afectos, que simultaneamente nos torna adeptos e dependentes, costuma ser a dilecta consequência que nos impõe ritmos novos, pulsares inconstantes, estruturação de outras prioridades e motivações. Mas é inclusive o corte profundo com hábitos e maneiras de estar precedentes. Isto é, uma autêntica revolução nas nossas consciências, quotidiano e objectivos de vida. Para nos reconfortarmos, é usual identificar esse sentimento por amor, arrebatamento e atracção. Ou intimidade. Todavia, pessoalmente, não seria capaz de o admitir sem reconhecer a característica simplista de tal recurso – ou tais – que a definição acarreta. Porque essencialmente é um sentimento mais complexo e intrincado, como que assim mo dita...



Quando imaginamos que a vida emocional e afectiva se encontra estacionária, eis que o acaso nos prega outra partida – precisamente aquela que faltava, e jamais supusemos vir a acontecer-nos, do género totoloto que sai sempre e unicamente a outrem –, colocando-nos frente a frente, determinando e demonstrando as nossas comuns fragilidades como aos infantes da plebe, a quem o simples facto de terem nascido é já de si uma controversa provocação ao destino, quiçá a primeira das desgraças de entre as demais que a existência lhe reserva!... Ao pensarmos que mais nada de peculiarmente péssimo (ou de mal) nos poderia vir a surpreender, eis que o acaso nos volta a jogar um contra o outro, como se fôssemos suas marionetas, quais seres indiferenciados sem vontade própria, submissos e obedientes a uma ordem ancestral desconhecida, cuja útil obrigatoriedade em coisa nenhuma nos beneficia e não vai além do fazer-nos cumprir os desígnios estabelecidos pelo suserano e senhor das nossas vidas, quer nos caprichos superficiais como nos fundamentos. E ao caso, unicamente como seus intérpretes e actores!
Acreditar que assim seja, em absoluto, pode inclusive não ser argumento válido para justificar a nossa vontade, nem para subtraí-la, mas sim uma forma de nos conformarmos com aquilo que a vida nos dá e proporciona. Nem atitude de defesa quanto à nossa sanidade mental, ou minimamente empenhada e em prol de um futuro assaz expectante e continuamente imaginado. Utópico. Ideal. Contudo, estabelece uma urgência, uma imediatez, que nos convoca, estipulando novos graus de tolerância e, em termos explícitos, de sociabilidade. Outro grau de exigência na escolha das pessoas com quem nos damos, privamos, preferimos para conviver, e que tem muito a ver com uma espécie de consanguinidade da alma. Ou, até mesmo, com aquela determinada maneira de nos expressarmos, de nos vestirmos, de nos comportarmos, de falarmos e de nos envolvermos – ou tratarmos – com os demais, que se consubstancializa e traduz enquanto dialecto próprio de ser e estar. Estilo. Glamour.
Quando digo que há presenças que nos alteram os dias, obrigando-nos a reflectir acerca do nosso relacionamento com elas de uma forma mais contínua e premente, não estou a efectivar qualquer escala de positividade – ou negatividade – objectiva. Estou, isso sim, a reforçar o pressentimento de que há pessoas que, quer pela atracção e comunhão que exercem em nós, quer pelos sentimentos que em nós espoletam, estão superiormente destinadas a preencher, em termos quase absolutos e totais, a nossa capacidade de empatia, ou seja, de reconhecimento do Outro. Que ocupam o nosso segredo, a nossa capacidade de criar e usufruir do quarto que é de mais ninguém, aquele reduto privado a que negamos a entrada seja a quem for, do quadro que jamais alguém ousou pintar senão nós, ou sequer olhar como nós o olhamos e compreendemos, cuja existência todos desconhecem, excepto aquela pessoa que conquistou o direito de lá entrar, sempre que quer e sem bater à porta. Que tal se afigure bom ou mau, é indiferente, principalmente porque nos obstrui a lucidez, ao alcançar uma impetuosa imperiosidade tal e tamanha, que a urgência antes admitida apenas às nossas necessidades vitais, se translada, por assim dizer, para a presença dela e descodificação dos comos e porquês com que se apresenta.
Dito de outra forma. Logo que senti que voltava a gostar de estar contigo, não por aquilo que dizíamos ou faríamos, nem pela utilidade ocupacional da solidão, e tão pouco pela mais-valia que a tua presença acrescentava no que aos outros de mim pensariam, mas sim pelo conforto que o silêncio da tua presença, o simples saber que estavas comigo e não em qualquer outro lugar, me transmitia – talvez algo semelhante àquele reconhecido bem-estar pacificador que a noção de voltar a casa nos inspira, depois de uma longa, desconfortável e cansativa ausência, por exemplo –, bem como pela tranquilidade de estar com alguém para quem não precisava de justificar nada ou representar qualquer papel, senão o da minha própria espontaneidade, apercebi-me imediatamente que continuavas a ser para mim aquela que já houveras sido, e, provavelmente, sempre foras: a imprescindível. A insubstituível. Aquela com lugar marcado no nosso coração que ninguém mais pode ocupar – embora, surpreendentemente, sejamos incapazes de dar nome ou definição exacta ao sentimento que a ela nos liga!
É claro que preferíamos que fosse amor, sentimento típico e comum, que normalmente toda a gente entende saber o que é, muito para além das inúmeras nuances que o conformam, sistematizam e instituem... Mas que tipo de amor? E porquê só amor e não outra coisa qualquer?! Porque não preocupação desinteressada?... Ou amizade. Companheirismo. Compreensão. Prevenção egoísta. Medo simples de nos perdemos um do outro... Porque não?!...



Cometamos, então, um pequeno crime, um insignificante delito de lógica... Uma rudimentar anamnese. Proponho que retornemos ao tempo em que nos conhecemos, na Biblioteca Municipal, isso, a quando da Comunidade de Leitores! Quem poderia supor que nos voltaríamos a encontrar, no café, no jardim, na gare rodoviária, nas praças e ruas da cidade, no cinema documental, nos circuitos quotidianos? E, contudo, fizemo-lo... Nada havia entre nós, que o justificasse, além do mistério da diferença! Mal sabíamos o nome das cartas, a cor do baralho, as cambiantes ou matizes dos humores e motivos, com que nos iríamos jogar, e muito menos as regras do jogo a que nos propúnhamos. Estávamos em branco quanto a nós e, sobretudo, quanto aos nós que nos sustinham e ligavam, enleavam na trama do espanta espíritos que parara de tinir. Mas, por impossível que possa parecer, em vez de nos desenlearmos da enrascada em que nos metêramos, cada dia enlaçávamos mais e mais o relacionamento que iniciáramos.
Podia ser estranha a forma como nos estranhávamos no acelerado do quotidiano comum; todavia, não o era – e sabíamo-lo. Tendia a assemelhar-se à tentativa de fugir para a frente, provavelmente renunciando ao misterioso medo que nos causa a sensação de estarmos condenados um ao outro. De não sermos capazes de aceitar o nosso destino, simplesmente, pelo bom que ele tinha para nos dar e mostrar, desacreditando nas facilidades oferecidas, e subscrevendo o pio aforismo popular que induz as gentes rústicas a não sentir prazer em desfrutar daquilo que abunda, é de borla, e ninguém forjou, como a natureza, a água cristalina dos regatos, as matas silvestres, as paisagens coloridas da Primavera, o chilrear dos pássaros nos trigais e outeiros, o espraiar das águas sobre os areais dourados, as inúmeras cambiantes que o sol oferece entre o nascer e o ocaso, a serenidade dos pequenos répteis sobre o penhasco escondido, o ar puro dos bosques e serranias, o grito ondulante do melro no pomar, e que evidencia as origens miserabilistas e medievais dum povo acomodado na irresponsabilidade política, sumariamente reconhecido no quando a esmola é grande o pobre desconfia. Porque, afinal, mesmo quando nos atirávamos para o convívio dos desconhecidos, fazíamo-lo na tentativa de angariar experiência que nos cimentasse, fortificasse, esclarecesse e apurasse, destilando o soro essencial (e eficaz) para alimentar a relação encetada. Angariávamos capital emocional que nos solidificasse a quota que ambos detínhamos na empresa comum: a liberdade de nos sentirmos a viver um em função do outro, e irremediavelmente. Prò que desse e viesse. E sem esperança absoluta nem recusa totais... Pese, embora, a relatividade das circunstâncias!
É uma arte exímia essa, a de nos socorrermos mutuamente desesperançados. Sobretudo, por nunca termos buscado um no outro a (re)solução para os nossos problemas e limites, mas estarmos sempre dispostos a contar connosco, eu contigo e tu comigo, em facilitar-nos os compassos de espera que nos permitissem o novo salto, a velocidade e balanço suficientes para atingir a altura necessária, pronta, insuspeita, com que ultrapassar as caprichosas peripécias do ser e estar de cada um.




Naquele tempo, a vida não me compreendia minimamente, e eu pagava-lhe na mesma moeda. De pleno direito e em pé de igualdade, tratava-a tal e qual ela me recebera: com despropósito, sem um pingo de vergonha e menos de consideração. Até porque, se ambos existíamos, por que havia de ser eu o obrigado a compreendê-la para nos facilitarmos a convivência, e não ela também a procurar uma plataforma de entendimento, que era muito mais velha e experimentada, han?!?... Aliás, pensava eu, na época, que a reciprocidade era uma lei fundamental à sustentabilidade, e não um modelo de diferenciação instigador de arritmias e assimetrismos; o que ainda hoje professo, por sinal, em resultado do que constantemente me debato com esse desequilíbrio estrutural, que é o de não saber discernir entre uma lei da vida e uma estratégia dela. É que numa lei as obrigações são mútuas, na generalidade e universais, enquanto na estratégia, é somente ao outro que cabe toda a obrigatoriedade (objectiva e operacional). E se na primeira a existência, a vida, é um réu igual a nós, na segunda, cada estratega pode também ser juiz, medidor na realização de objectivos e avaliador de resultados, aferindo da sua eficácia, em termos práticos e concretos. Portanto, acontecia sentir-me no direito de modificar a vida conforme, tanto e quanto, ela intentava modificar-me a mim; no que, por ela me torcer, eu a distorcia!
Apesar de tal conduta acarretar invariavelmente elevado número de dissabores... Desencontros. Atropelos. Injustiçamentos. Multas. Manifestas e desvirtuosas idiossincrasias. Acentuadas desagregações psicológicas. Idiotismos. Pois desconhecia que, se se aposta, ou nos apostamos, acertar no pleno, exactamente quando nem sequer estamos habituados a jogar, pode ter muito de sorte inicial, mas não é, nunca será humano. E eu queria a grande por cada vez que a tômbola girava... A taluda, logo que te via!
Tu foste a esperada na sorte, confesso. Era intransigentemente o acaso a ditar-me põe-te a pau, que desta é que é. Pelo menos, foi assim que o interpretei... na minha santa ingenuidade. Impreparado para o dia-a-dia, para o consequente nascer, crescer, criar e morrer da vida, era também incapaz de admitir que não estava preparado para os outros. Preferia sentenciar que o erro de convívio, ou nas negociações semânticas, lhes pertencia exclusivamente. Que a incapacidade era unicamente deles. Ou que o defeito (o ruído) de comunicação estava, sem a mínima dúvida e incondicionalmente, nas causas que lhe eram próprias, personalidades, características temperamentais e motivação!
Ora, essa mágica exalação narcisina, qual propensão neurótica, com que a imaturidade nos faz acreditar numa inocência imaculada, cartão de crédito ilimitado no banco da esperança, por tão falsa e absurda, não me deixava enxergar quão importante me eras. Nem como cada uma das minhas células te pertencia sem qualquer direito de voto ou opção. Porque ser é principalmente pertencer; e só o somos verdadeiramente, quando caminhamos libertos e sem receios no cumprimento – e ao comprimento – da nossa estrada, na execução das quantas passadas que rasgam a nossa vereda, e a instituem como caminho diariamente conseguido.
Aqui não há deus nem mandamentos. Há simplesmente o sortilégio de reconhecer o valor da ternura e carinho. E se para os contrair tivermos que recorrer aos anteriores, então que o façamos sem remorsos, limites, condicionalismos ou constrangimentos. Pois nunca é tarde para partir à desfilada no dorso da aventura, e nenhuma há de maior do que a felicidade de quem amamos. É esse o novo mundo que podemos dar aos mundos, por quanto perto disto Os Descobrimentos mais não foram que uma brincadeira infantil!
Porque será que todas as pessoas que nos aconteceram se voltam a repetir?... Porque nos conjugamos, a maioria das vezes, no imperfeito e inacabado pretérito da primeira ocasião. Foi Sartre quem o caracterizou na hipérbole de Os Mortos Sem Sepultura, mas nem precisava que aí o tivesse feito, para que agora o reconhecêssemos como verosímil. A sensação de que a humanidade é algo ainda por acabar, sujeito a contínuos aperfeiçoamentos, miscigenações, cruzamentos de DNA’s, é-nos mais ancestral que a ideia da existência de sagrados e divinos. Está para lá de todos os lás que imaginar possamos.
Ninguém pode apagar o seu próprio percurso sem caminhar de marcha-atrás. E mesmo os que o fazem pegada após pegada, aproximar-se-ão sempre como quem está de abalada. Inconscientemente. Com inoportunidade e sem objectivo definido e convicto. Sem querer, ou porque o não podem fazer de diferente forma, considerando que não haverá, em seu perfeito juízo, quem opte por agir dificilmente quando pode escolher a simplicidade. Pelo que se tornarão artigos à margem (da vida). Alguém que nunca dará sentido e determinação aos nomes que liga, sustenta e indica... quase gralhas de uma mancha falhada de significado na teia semântica dos grafismos, acidentes de navegação duma espécie que raramente segurou o leme de seus destinos, a quem o acaso e a necessidade decretaram os rumos a seguir.



Presentemente reconheço que posso escrever o teu nome com o sangue da minha voz, sem blasfemar nem invocar a intimidade do amor em vão. Porque actualmente também sei quão doloroso pode ser o renegar-te. Quanto significa a tentativa de esquecer-te, posto que apagar-te de mim é apagar-me contigo. E sobejamente foi demonstrado já, de régua, compasso e esquadro, que na trigonometria do ser só se não dá quem se não tem...
Se o tiveres ao alcance, escuta Chopin no recato de me leres. Há pormenores, apontamentos melódicos, ressonâncias, ecos, em cada nota que se dilui e extingue, que pretendem dizer tudo aquilo quanto o calar não conseguiu. Inclusive o calar gritado, que é essa forma distinta de atirarmos as palavras que não queremos para fora de nós, as que nos sufocam e inauditas, ou simplesmente deturpadas se aproveitam das vias de comunicação desimpedidas e preferem pecar eclodindo na superficialidade física dos sons. Talvez nem valha a pena, mas quem sabe o que perdeu sem o ter experimentado? Do outro lado da esquina está o resto de nós que não vimos. É ela o Bojador que nos faltou dobrar, torcer, dar ao jeito de preferir naufragar a não continuar à tona e uma liberdade interior por liquefazer. Porque quando a criança é abandonada um dia, irá senti-lo para toda a vida. Se nos propomos a fazer algo que não fazemos, a escrever uma carta que não enviamos, a ter um sentimento que não dizemos, estaremos indubitavelmente a influenciar o restante tempo da nossa existência com um momento incumprido.
Viver é uma sentença que nos impusemos executar o mais exemplarmente possível. Nem que para isso, para lavrar essa condenação, nos tivéssemos simultaneamente outorgado juízes e carrascos, legisladores e meirinhos. Contudo, beleguins de nós mesmos, ao notarmos como seria demasiado onerosa e árdua a tarefa, resolvemos abdicar da burocracia interior a que ficáramos consequentemente obrigados, mandatando para o efeito o tempo e a idade, num horário que o nosso relógio biológico se indispôs a concretizar e medir. A satisfazer. Foi então que nos adiámos para melhores dias, esquecendo que quem sobretudo os determina é uma primavera que não pertence ao calendário das estações, e que nos está adstrita desde o minuto em que fomos gerados, estipulando a duração e qualidade de cada um dos nossos genes e células, garantias e salvo-condutos, limites e propensões. Daí que despertar seja uma consequência dolorosa mas imediata, logo que o biomaquinismo de precisão toca a rebate. Quer queiramos, quer não. Porque então, nesse exacto momento, fomos obrigados a reconhecer que não há meridiano que nos propicie consolo, reduto que nos acolha e acalente, quando vemos o que evitáramos ver, e admitimos que nada daquilo que nos aconteceu teria acontecido, se tivéssemos feito o que não fizemos. No meu caso particular, se te tivesse enviado uma carta que te escrevi mas não meti no marco do correio, esquecendo-a com selo e endereçada, apenas falha de pernas que a levassem onde ela por si só não podia ir!...
O sino que soou logo que te vi, dita-me ainda o alerta de assentar raça. É o instinto a jurar-me fidelidade. É cada uma das minhas bactérias a assumir a postura de comando, ou de felino em pose e manobras de caça. Mas é também o remanso reconhecido de quem regressa finalmente ao seu quintal de ilusão. Ao seu jardim de sentir-se a salvo. Àquele local onde tudo quanto nos pode fazer mal ou envenenar possui a doçura, delicadeza, textura, maciez, arrebatamento e aroma das mais sublimes flores e especiarias... Tudo coisas belas e magníficas que nos matam por bem (querer).
Nesse claustro perdido em que deambula e medita o eremita que nos arruma as preces, costumam ainda florescer ervas das quais desconhecemos a utilidade e fragrância. Foi o acaso ou a larada de qualquer pintarroxo que aí as plantou? Teremos portanto o direito de as mondar? Seremos assim tão perfeitos, puros e suficientes, que nos assista a vocação missionária de jardinar sem elas? Mas, não obstante, insistimos em regular metódica e cientificamente as estações aos nossos afectos. Estabelecer o pulsar dos nossos climas. Determinar o ritmo, frequência e quantidade de cada rega. E esquecemos que não tem a mínima importância saber o nome e estirpe das plantas a que nos seguramos quando caímos de borco! É por isso que penso que não devemos apagar as sardas que nos eclodem no rosto e na pele, pois que muito bem podem elas ser o sinal da nossa outra pele que está por baixo, aquele que nos forra o íntimo, e que interiormente nos reveste e protege... No que se iguala a mais uma das razões por que não consigo (nem permito) esquecer-te, arrancar-te do meu coração adepto. Porque todos somos de menos para fazer prevalecer a dignidade de cada um, e sabemos que apenas conseguiremos a originalidade desejada, quando tivermos etiquetado todos os porquês nas pessoas que os suscitaram.



Sei do pouco, enfim, de quanto me acode em excesso, numa narrativa que travará as rotas do indizível por desmentir. Mas não desconheço que dele, e dela, o carinho é tão-só a ínfima parte. Um tão tudo de tampouco... Um delével toque, um sopro, um murmúrio sobre a pálpebra cerrada no silêncio de quem adormece sonhando que sonha, e a sonhar se translada para o coração de quem ama.
Como não desconheço, ou reconheço igualmente, que não voltarei a esquecer que há brisas que correm noutras correntes, insondáveis talvez mas assaz escrupulosas, ímpias, capazes de se insurgirem no quotidiano, determinando-o, influenciando-o muito para além do que é lógico, compreensível e normal. Tal e qual assim me aconteceu, que por não ter metido uma carta tua, passei um sábado sem tomar banho, fedendo, sujo e sem beber café, a cabeça a estoirar e o coração num pântano, irritado, sorumbático, agoniado, neurótico, a servir de sanita às malquistas aves que do céu me escarnecem, e não pude escrever uma linha sequer acerca da catástrofe que me sucedeu, além de, ó desafortuna dos mal nascituros e desgraçados, a minha equipa predilecta sofreu a pior das derrotas no campeonato, precisamente com a sua rival no bairro metropolitano, a única cujos adeptos sabem quem somos porta a porta, e nos vão perguntar com sorrisinho matreiro a meia haste «então, gostou do joguinho, gostou?...» Esses; sim, esses!
E como se não bastasse a afronta, eis o mais reles dos castigos mas também a pena supremamente dolorosa para qualquer prevaricador: o medo. O receio de ser descoberto. O stress da ameaça. O ficar recluso em casa e não sair nunca, ou, fazendo-o, apenas furtivamente, pelas artérias menos frequentadas, colado às paredes e o coração batucando de meter dó, o vivo pressentimento de que a todo o momento se pode ser vítima e alvo de emboscada, ataque selvagem e à socapa, investida vingativa dos meus companheiros de clube, fãs e sofredores da mesma claque ou bancada, que foram punidos, humilhados, derrotados, achincalhados, vilipendiados comigo e por uma falta que somente eu cometera: o em tempos não te ter enviado uma carta que te escrevera. Sim; porque neste mundo tudo está relacionado com tudo. E a minha culpa com ele, numa rede infinita de nós e elos, onde caem as maiores maravilhas como as piores tragédias, bastando para as provocar fazermos uma coisa que não devíamos ter feito ou não fazer outra que devíamos ter feito, assim como me sucedeu, e muito bem-feita foi, que é para abrir os olhos e jamais cometer a asneira que cometi, em sonegar-te uma missiva, sequestrando-a inadmissivelmente, que é como quem diz cometer um execrável e vil aborto, pois que ao furtar a carta ao seu legítimo destinatário, eu não só evitei que ele conhecesse o que era dele e devia saber, mas inclusive que duas vozes se encontrassem (a minha e a tua) e delas nascesse a criança, o significado do futuro, a derradeira mensagem de carinho no ventre da esperança de quem muito bem se quer.
Por conseguinte, em nome desse sentimento conto-te isto mas peço-te encarecidamente que o não divulgues, que não digas a ninguém que o meu clube perdeu por causa de mim, por favor não digas, que não tenho corpo – sim, sou fraco e insignificante, e aflige-me a dor... – para aguentar tudo quanto eles (os aficionados) dizem que querem fazer ao árbitro, aos fiscais de linha, aos jogadores de um e outro lados, à ministra das finanças, ao treinador e direcção do clube, bem como à filha da vizinha, que é boa como o milho, mas não sei como é que a claque a conheceu, pois ela nunca vai ao futebol! Por favor não digas, não digas que eu sucumbiria certamente, morria sem a menor dúvida do que fora, e não iria parar ao céu, pois não, ah isso não, que quem morre de um acto deste calibre não consta que tenha sido escolhido para lá entrar.

Não digas que eu prometo, sim prometo, nunca mais reter qualquer carta tua e, vê bem, se o fizeres e eu falecer, então é que jamais terás cartas minhas... Compreendes-me, não compreendes? Também eu, que aprendi a lição: calar aquilo que queremos dizer pode transformar-nos a vida num inferno. E que é para não esquecer, a fim de que outros sábados semelhantes se não repitam!