A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

sábado, outubro 31, 2015

INSTANTE MORTÍFERO




INSTANTE MORTÍFERO 

Abro o tinir de cada pingo de goteira
E como-o como se fosse um figo seco; 
Seu mel escorre-me pela alma inteira
E só com a língua lhe toco... Só com ela peco
– Ansiosamente e de qualquer maneira. 

O gesto é rápido, pronto, imediato; 
E nesse zaspe me escondo e destapo
Frugal, fugaz, a sentir-te sem te ver
Com a doçura que uma passa me traz. 

À porta mais ninguém pode bater
Sem que o pingo se insurja acutilante, 
Qual adaga, punhal do céu a descer
Pra matar apenas com o instante! 

Joaquim Castanho

RAZÃO DE ME CRER VIVO




RAZÃO DE ME CRER VIVO

Quanto me morria
Renasceu
Sob um «Bom dia»
Breve mas (teu)
Se multiplica e dança
A luz que inebria
Na mudança, 
O clarear celeste
Que só tu dás, 
Só tu és, 
Só tu deste
Na íris que trás
Isis grega
Em luar de paz
E luz que não cega. 

Quanto me morria
Por ti findou, 
E assim nascia
(Iridiscente)
No novo dia
A luz a que me dou
Se teu olhar me diz
Na manhã fulgente,
Onde querer é raiz
Do ser que sou
Nesse puro voo
Em só crer 
Viver
Porque te quis. 

Joaquim Castanho

ÍMPETO CROMOFÓBICO




ÍMPETO CROMOFÓBICO 


Sem ti todos os poemas acabam
Antes do fim mesmo ainda antes
Começar é já uma árdua epopeia 
Impossível é renovar palavra concreta
Pastosa agonizante pelos pauis da ânsia
O desespero a escorrer-lhe sílabas abaixo
Viscoso acorrentado ao temível desconhecido
Pronto e viável dos vendavais infinitos, 
Que a vida é um tumulto de incompreensão, 
Um atoleiro de sombras e receios mil. 

Sem ti o sol é uma passagem estreita, 
Um pomar vazio, um rio sem corrente. 
E as sílabas que sabiam taleigos e várzeas
Ou rodopiavam nos trapézios do ocaso,
Não passam agora de lixo amontoado 
Nos cantos da página cega à flor das horas. 

Porque sem ti arranco-me o coração pla boca
Ouço a madrugada dum luar que é só luz
Onde o mistério e saudade são vozes off, 
Os dias somente folhas mortas nos fundos
Das chávenas vazias dum chá cáustico amargo
Ácido de corroer a alma trôpega e senil, 
Trôpega e disforme sem ritmo nem rima
Alagada de silêncio putrefato sulfuroso
Faz almôndegas dos verbos e cartilagens 
Mais desprezíveis da lusatinidade cediça 
Nociva é a pétrea expetativa que mata esperanças
Pica os olhos da noite e da platina de luar 
Frio, lúcido, ímpeto cromofóbico a dizer-se 
– Que ininterruptamente me arranca o coração
Pela língua é que os rios enchem oceanos 
D'água doce e raízes e girinos e sementes de vida. 

Joaquim Castanho

quarta-feira, outubro 28, 2015

A SUPERFÍCIE DO PLANETA





A SUPERFÍCIE DO PLANETA
Daniel Drode
Trad. Mário Henrique Leiria

"Hoje renunciei a atravessar a margem; custa a suportar este tempo bizarro em que o futuro e o passado estão juntos num mesmo plano com o presente. Chego a crer com satisfação que este tempo é simples, mas não me adapto a ele; sem dúvida é lógico, mas não para mim. Para dizer a verdade, já não vejo qual será a minha condição normal. O sistema aparece-me agora, num retrocesso a que a continuação da minha vida me força, aparece-me cada vez menos atraente. 
No começo da tempestade que rola sobre a minha ilha, tive um pesadelo que atribuí ao calor. Contudo estava acordado. Sim, engano-me ao pensar num sonho, isto tinha antes a consistência da visão. Uma visão, eis a palavra.  
A maquinação mostrou-se-me sob a forma de um engenho das eras bárbaras. Tudo o que existia com a finalidade de reduzir a espessura da vida subterrânea: a neutralização dos écrans visuais, a fechadura das portas, etc., imaginei-me, para produzir estes acidentes, um cilindro de carrilhão. Triste mecânica entre muitas outras, que fazia soar o tempo do alto dos campanários em forma de tabernáculo. Uma minuciosa desordem de pontas que batiam uma nota a intervalos regulares. 
O que nos criou devia ser a imagem destes cilindros: complicado mas preciso. Esgoto toda a comparação se acrescentar que uma mosca errando à volta do cilindro não compreendia a maquinação porque a música a atordoava – do mesmo modo éramos entorpecidos pela visão. Então, porquê não supor mais malignidade no detalhe? 
Mergulho no detalhe: o écran do fone não se teria apagado num dado instante, de um modo irreversível, mas de maneira brusca: ele teria funcionado em intermitências, ora. E isto com o fone e com a porta. Estas paragens e regressos ao movimento alternando-se confundiam-se na sua consequência: o recurso à visão, único elemento indefetível. 
Se pretender um corolário mais vasto tenho medo de mim mesmo. Assim – assombrosa possibilidade! – pode ser que tivesse conhecido Rana pelo écran e que em seguida a tivesse esquecido. É-me permitido crer, do mesmo modo, que o fone tivesse sido desligado sem que isso deixasse em mim um traço de despeito. Com tanta certeza, avançarei nisto: a porta ser aferrolhada nalguns momentos."
(Págs. 130/131)   

DA IMAGÉTICA, E DA POÉTICA




DA IMAGÉTICA, E DA POÉTICA

Não há sentimento, ideia, emoção
Lugar nenhum que a poesia não visite; 
E pese embora apenas nunca aí fique
Espalha neles e nelas ou pelo seu chão
As folhas com que o tempo publique
Quanto a vida lhes gravou da sua dimensão...

Mas a sua preferida é a imagem, 
A metáfora subjetiva da solidão
Com que o eu empreende a viagem 
Ao exercício do aplauso na multidão. 

Joaquim Castanho

A DECISÃO




A DECISÃO 


Se houvesse um caminho escrito
Numa carta fechada para um destinatário aberto, 
Deitarias os pés à rua ou não?

Porém, na calçada, o granito
Dos paralelos é quadrícula na matrícula do deserto,
Pra anotar a nova sugestão... 

E o grafito lá estaria como um grito
No chão pintado e escrito 
Dum rotundo e gordo «E então?!».  

Que só decide quem disso é capaz, 
Não quem quer, 
E seja pela liberdade como pela paz
Há sempre um homem ou uma mulher
Que indecide ou faz sequer
O decidido, e assim jaz.   


Joaquim Castanho


LEVE BRISA SOBRE O MONDEGO




LEVE BRISA SOBRE O MONDEGO 


Me adianto à hora na mudança
E sublinho cada sílaba e passo
E minuto numa língua que dança
Pelo que penso e não pelo que faço,
Se escrevo... Então retoco o traço
Corto e pinto como simples criança
Que tenta reinventar o momento,
Alfabetizando-o com o espaço
Que é teu – como teu é o pensamento... 

Essas circunstâncias que são minhas
Gizam propriamente também quem sou, 
Pois o restolho das ervas daninhas
Jamais produzirá o trigo que moo
Letra a letra, ou estrofe a estrofe
Pulsando ímpar contínuo e de chofre, 
Tranquilo ou no supetão do asilo
Se me exilo nas ruelas da emoção. 

Todo o voo tem o seu próprio chão. 
E não há vento que melhor o alise
Do que aquele nascido pela mão
Do sonho quando se penteia Nise! 

Joaquim Castanho  

OS BIBLOTINHOS RATADORES




OS BIBLOTINHOS RATADORES

Os ratinhos do papel
Tudo roem sem mastigar, 
E besuntados desse mel
Dizem qu'estão a trabalhar. 
Põem as cotas em cotão,
Etiquetas pra reforçar,
Barras binal digitais, 
Bigodes de sim e de não
E bonecos nos manuais.

E tal com tanta atenção
Fazem, que os livros roídos
Diluem-s'em ruídos perdidos
Difíceis de encontrar,
Até pra quem só os quer... – ratar!

Joaquim Castanho  


O MURO E O VERBO




O MURO E O VERBO 

Tudo o que digo
Tem o verbo como gare, 
Ainda assim no abrigo
A alma nos não pare,
Atravessada plo receio
Entalada com o futuro, 
Sempre partida ao meio
– Alicerce deste muro! 

Joaquim Castanho

quarta-feira, outubro 21, 2015

ARRUFO NO IDÍLIO




ARRUFO NO IDÍLIO 

Unicórnio dissolvente
Assesta a testada
Atesta a mirada
Rilha o dente, 
Que a namorada
Ficou calada 
                      – De repente. 


Que será? Que rumina 
Ela? Mas a menina 
É Cinderela acordada, 
E diz que «É nada». 
E diz que «É nada».
E diz que «É nada». 

E sendo nada, então
Só deixa a pontada
Bicuda, sangrada
Da marrada – da solidão. 

Joaquim Castanho

ÂMAGO SECRETO




ÂMAGO SECRETO 

Escuto o ponto morto entre sombra e luz
Onde um astuto esgar subscreve o incolor, 
E nesse vértice do vazio ponho minha cruz
De devoto, num apelo sem qualquer fervor. 

Sou nódoa negra da fé, o sem-crença alguma
Que, pé ante pé, se extingue no frívolo nada; 
Porém, se encalho no frio coalho da espuma, 
É tão-só porque creio numa sede ensimesmada...

Sede de mim, sede de ser seja aquilo que for
E princípio que é fim, no meio da cruz furada; 
Somente a alegria nascida da ausência de dor 
Que assim é tida por nunca ter sido desejada. 

Sede sem sede ser, linha de demarcado aspeto
Que se enleia e desenleia no seu próprio enredo; 
Mas sede saciada no seu nada pelo ínfimo afeto
Que há em ser o segredo secreto dum segredo. 


Joaquim Castanho 

terça-feira, outubro 20, 2015

AO ABALO DA BALADA




AO ABALO DA BALADA


No escuro da noite escura
Onde sequer entra o luar, 
Há esse erro que perdura
De não deixar a Lira cantar,
Omitindo-lhe a doce voz, 
Mas quem mais perde somos nós. 

Perdemos glamour e sedução, 
E do essencial, o preciso. 
Perdemos ainda a tradição 
Que trina a magia no sorriso...
Que prà'lém da perda do saber
É a pior perda de se ter. 

E perdemos também a chegada
Trocando-a só pla despedida, 
Esquecendo por isso o nada
De ser essa a melhor medida;
Outro nada qu´é tanto e pouco,
Mas separa ser são de louco.

Porqu´esta contenda do cantar, 
Grande nada para quem canta, 
Deu o seu lugar à bravura 
Duma sebenta que é santa,
Onde só o enganar perdura.

Só onde engana a chegada
Pra não ser melhor que a partida, 
Pois essa coisa acabada 
Nada será se comparada 
Ao vivo começar de vida.

Joaquim Castanho     

PROLONGADA CONJUGAÇÃO




PROLONGADA CONJUNÇÃO 

De quantas estrelas há
Plas galáxias infindas, 
Apenas uma só será
Dona dos "mais" e "aindas"
Com que a oração me sustém; 
Com que a frase incita
A luz que iluminando vem
De ode em ode e ínclita
Escreve arpejos de flores, 
Pétalas de sol sonhado
Que, quer vás a onde fores, 
Estará sempre a teu lado.

Joaquim Castanho



RECADOS DE ÁGUA




RECADOS DE ÁGUA

Pois as nuvens que aí vês
A flanar no teto celeste, 
São os recados deste mês
Pelos "Olás" que não deste. 

Nada terão de invulgar, 
Nem mesmo o irem do sul, 
Escritos com tinta do mar
Sobre pergaminho azul; 
Que sendo imaculado até, 
Com a cinza posta ao lado. 
Nos cabeçalhos e rodapé, 
Ata recado a recado
Em painel de sonho e fé.

Joaquim Castanho 

CHARLES BAUDELAIRE, Paraísos Artificiais




CHARLES BAUDELAIRE
Paraísos Artificiais


O PALIMPSESTO

«Que é o cérebro humano senão um palimpsesto imenso e natural? O meu cérebro é um palimpsesto e o vosso também, leitor. Inúmeras camadas de ideias, de imagens, de sentimentos caíram sucessivamente sobre o vosso cérebro, tão suavemente como a luz. Cada uma parecia sepultar a anterior. Mas, na realidade, nenhuma pereceu.» Todavia, entre o palimpsesto que se apresenta, sobrepostas uma na outra, uma tragédia grega, uma lenda monástica e uma história de cavalaria, e o palimpsesto divino criado por Deus, que é a nossa incomensurável memória, há a diferença de que no primeiro existe como que um caos fantástico, grotesco, uma colisão entre elementos heterogéneos, ao passo que no segundo a fatalidade do temperamento põe forçosamente uma harmonia entre os elementos mais díspares. Por mais incoerente que seja uma existência, a unidade humana não é perturbada. Todos os ecos da memória, se se pudessem acordar simultaneamente, formariam um concerto, agradável ou doloroso, mas lógico e sem dissonâncias. 
Muitas vezes, viram acender-se no cérebro todo o teatro da sua vida passada. O tempo foi aniquilado, e alguns segundos bastaram para conter uma quantidade de sentimentos e imagens equivalentes a anos. E o que há de mais singular nesta experiência, que o acaso preparou mais de uma vez, não é a simultaneidade de tantos elementos que foram sucessivos, é a reaparição de tudo o que o próprio ser já não conhecia, mas que é no entanto obrigado a RECONHECER como seu. O esquecimento é apenas momentâneo; e em tais circunstâncias solenes, na morte talvez, e pelo ópio, todo o imenso e complicado palimpsesto da memória se desenrola de uma só vez, com todas as suas camadas sobrepostas de sentimentos defuntos, misteriosamente embalsamados naquilo a que chamamos esquecimento. 
Um homem de génio, melancólico, misantropo, querendo vingar-se da injustiça do seu século, lança um dia ao lume todas as suas obras ainda manuscritas. E como lhe censurassem este terrível holocausto feito ao ódio, que, aliás, era o sacrifício de todas as suas próprias esperanças, respondeu: «Que importa? O que era importante, era que estas coisas fossem CRIADAS; foram criadas, logo SÃO.» Atribuía a toda a coisa criada um caráter indestrutível. Como esta ideia se aplica, mais evidentemente ainda, a todos os nossos pensamentos, a todas as nossas ações, boas ou más! E se nesta crença há qualquer coisa de infinitamente consolador, no caso em que o nosso espírito se volta para essa parte de nós próprios que podemos contemplar com complacência, não há também qualquer coisa de infinitamente terrível, no caso futuro, inevitável, que o nosso espírito se voltará para essa parte de nós próprios que só podemos enfrentar com horror? No espiritual, tal como no material, nada se perde. Do mesmo modo que toda a ação, lançada no turbilhão da ação universal, é em si irrevogável, abstraindo dos seus resultados possíveis, todo o pensamento é inapagável. O palimpsesto da memória é indestrutível. 
«Sim, leitor, inúmeros são os poemas de alegria ou de desgosto que se gravaram sucessivamente no palimpsesto do vosso cérebro, e como as folhas das florestas virgens, como as neves indissolúveis do Himalaia, como a luz que cai sobre a luz, as suas camadas incessantes acumularam-se e, cada uma de sua vez, são recobertas de esquecimento. Mas à hora da morte, ou na febre, ou nas indagações do ópio, todos esses poemas podem reganhar vida e força. Não estão mortos, dormem. Crê-se que a tragédia grega foi expulsa e substituída pela lenda do monge, e a lenda do monge pelo romance de cavalaria; mas não é assim. À medida que o ser humano avança na vida, o romance que, mancebo, o deslumbrava, a lenda fabulosa que, criança, o seduzia, murcham e obscurecem por si mesmos. Mas as profundas tragédias da infância – braços de crianças arrancados para sempre dos pescoços das mães, lábios de criança separados para sempre dos beijos das irmãs, – vivem sempre escondidas, sob as outras lendas do palimpsesto. A paixão e a doença não têm química com poder bastante para queimar essas imortais impressões.»           

CHARLES BAUDELAIRE
Paraísos Artificiais
Trad. José Saramago
(Págs. 154/5/6)
Capítulo VIII 
VISÕES DE OXFORD

PATRICK SÜSKIND, A Pomba




PATRICK SÜSKIND
A Pomba

"Há perguntas cuja resposta se adivinha na própria ocasião em que perguntam. E há pedidos cuja perfeita inutilidade se torna óbvia quando se pedem de viva voz e se olha a outra pessoa nos olhos. Jonathan olhou para os olhos enormes e sombrios da senhora Topell e soube instantaneamente que tudo era em vão, improfícuo, desesperado. Soubera-o antes, enquanto balbuciara a sua pergunta soubera-o, sentira-o no corpo, na queda do nível da adrenalina no sangue, ao consultar o relógio: dez minutos! E pareceu-lhe  que também caía e se afundava como se estivesse sobre um pedaço de gelo mole, prestes a derreter-se. Dez minutos! Quem seria capaz de coser aquele tremendo buraco em dez minutos? Ninguém. Absolutamente ninguém. E não se podia remendar o buraco na coxa. Era preciso pôr um reforço por baixo, e isso significava despir as calças. Mas aonde ir, entretanto, buscar outras calças, em plena secção de produtos alimentares do Bom Marché? Despir as calças e ficar ali em cuecas...? Inútil. Completamente inútil." 

in PATRICK SÜSKIND
A Pomba
Trad. Teresa Balté
(Pág. 63)

ENCONTRO AO LUAR




ENCONTRO AO LUAR

Nada se disse ao certo
Que não soubéssemos já,
Mas estivemos tão perto
Do mod'onde a razão está...

Era meigo e tinha cor
(Jeitinho de flor mimada),
Na subtileza sem pudor
Duma rosa orvalhada.

Nele dissemos sermos nós
O importante da questão,
Impondo o ênfase à voz
Da lua a brilhar pelo chão.

Creio que também nos disse
– Num sorriso aberto e cheio –,
Que s'eu por bem lho pedisse
Abria a porta do meio!

Joaquim Castanho

PALAVRAS DESPREVENIDAS




PALAVRAS DESPREVENIDAS

Pois, imprudentes são só as vozes
Que se escrevem nas costas do texto, 
Deturpando-o; e suas algozes
Obrigam as palavras ao incesto
Dizendo-se gémeas por si mesmas
Fazendo sexo no papel, em resmas... 

E ali lhe nascem, prontas e esguias, 
Infinitas filhas, sósias eternas
Que assim, por sua vez, procriam nos dias
Em rodapés e apontamentos nas bermas. 

Creem-se umas Xerazades sem pudor; 
Amantes na semântica ou significado. 
Mas quem as ler saiba que são só amor
Sílaba a sílaba bem dedilhado. 

Joaquim Castanho

ESPERANÇA ABSOLUTA




ESPERANÇA ABSOLUTA 

Quanto morro de morrer-me
Apenas por teu nome calar?
Mas o rio há de levar-me
Para as profundezas do mar
Teu silêncio, minha foz
E meu destino no dizer, 
Que o futuro somos nós
Quando o sabemos fazer...  

E embora vá ao infinito
Da dor só por uma linha, 
Já te não vejo no granito
Desse túmulo de rainha. 

Joaquim Castanho 

segunda-feira, outubro 12, 2015

FLOR INICIAL


ESPERANÇA ABSOLUTA




ESPERANÇA ABSOLUTA 

Quanto morro de morrer-me
Apenas por teu nome calar?
Mas o rio há de levar-me
Para as profundezas do mar
Teu silêncio, minha foz
E meu destino no dizer, 
Que o futuro somos nós
Quando o sabemos fazer...  

E embora vá ao infinito
Da dor só por uma linha, 
Já te não vejo no granito
Desse túmulo de rainha. 

Joaquim Castanho 

LAMENTO DO TROPEIRO




LAMENTO DE TROPEIRO

Nestes dias assim
Em que o céu me cai sobre a cabeça, 
Nada acontece só por acontecer
Sem que a alma me estremeça. 

Queria dizer o teu nome
Mas o silêncio me cala, 
Enfim, 
Pondo-me o ânimo conforme
O negrume que o dia exala. 

E da jornada a luz passiva, 
Capaz de matar a inspiração, 
Fecha-se para a noite, em comitiva, 
Longe da querência... – perdido peão! 

Joaquim Castanho 

URSULA K. LeGUIN, A MÃO ESQUERDA DAS TREVAS




URSULA K. LeGUIN
A Mão Esquerda das Trevas

"– Que lugar é este? – inquiriu, olhando em volta. 
– O refúgio no interior da tempestade de neve – informou Hode. – Nós, os que nos suicidamos, permanecemos aqui. Agora, poderemos reatar os nossos votos. 
– Não quero ficar aqui – retorquiu Getheren, aterrorizado. – Se me tivesses acompanhado às terras do sul, poderíamos continuar juntos sem que os outros soubessem da transgressão. Mas preferiste quebrar os nossos votos, destruindo-os juntamente com a tua vida. E agora não consegues pronunciar o meu nome. 
E era verdade. Hode moveu os lábios repetidamente, mas não pode repetir o nome do irmão. 
De súbito, precipitou-se para ele e segurou-lhe a mão esquerda, porém Getheren desprendeu-se e correu, agora para o sul, não tardando a deparar-se-lhe uma muralha de neve que tombava com intensidade. Assim que a transpôs, voltou a cair de joelhos, perdendo as faculdades de movimento. 
No nono dia após a partida em direção ao Gelo, foi encontrado no seu Domínio por habitantes do Lar Orhoch, situado a nordeste de Shath, os quais o não reconheceram, pois Getheren apresentava o rosto ulcerado pela congelação e estava impossibilitado de pronunciar palavra. Não obstante, foi-se restabelecendo satisfatoriamente, à parte a mão esquerda, que teve de ser amputada. Apressou-se a negar que fosse Getheren, com o alguns afirmavam quando julgaram descortinar traços similares aos do rapaz que abandonara o Lar de Shath devida à perseguição dos companheiros, e asseverou que se chamava Ennoch e procedia das terras do sul. 
Certo dia em que percorria a planície de Rer, Ennoch, que entretanto, envelhecera, encontrou um homem da sua região natal e perguntou-lhe como se apresentava o panorama geral no condomínio de Shath. O outro replicou que tudo definhava gradualmente e ficou assombrado quando o interlocutor se identificou como sendo Getheren de Shath, explicando o que lhe sucedera no Gelo e quem encontrara lá. Por fim, recomendou ao outro: 
– Quando regressares, comunica que recuperei o nome e a minha sombra. 
Poucos dias mais tarde, adoeceu e expirou. O viajante transmitiu as suas palavras aos habitantes de Shath, e consta que a partir dessa data o Domínio voltou a prosperar como dantes." 

In URSULA K. LeGUIN
A Mão Esquerda das Trevas
Trad. Eduardo Saló
(Págs. 23-24)  

A RAZÃO DAS ÁGUAS CORRENTES




A RAZÃO DAS ÁGUAS CORRENTES

Sei duma lenda de encantamento, 
Tão antiga com'as cores e o vento, 
Que conta haver versos na corrente
Dos rios que, em marulhar de gente,
Se escoam pelo doce remanso
Dos olhos que suas águas fitam.
E também neles os meus descanso,
A ver de quanto me querem contar,
Desses ledos segredos que crepitam
Nas tranquilas águas de seu olhar. 

São magias, são futuros a nascer; 
São passados que ganham novos dias
Em baladas, acordes, melodias
E Musas que inspiram a vida... a viver! 

Joaquim Castanho 

URSULA K. LeGUIN, O MUNDO DE ROCANNON




URSULA K. LeGUIN
O Mundo de Rocannon
Trad. Eurico da Fonseca 

Como se pode diferenciar a lenda do facto nesses mundos que estão a tantos anos de distância ? – planetas sem nome, a que a sua gente chama apenas O Mundo, planetas sem história, onde o passado é feito de mito e onde um explorador ao voltar descobre que as suas ações de alguns anos atrás se tornaram nos atos de um deus. O irracional obscurece esse abismo do tempo atravessado pelas nossas naves que se deslocam à velocidade da luz, e nas trevas a incerteza e desproporção crescem como ervas daninhas. 
Ao termos de contar a história de um homem, um vulgar cientista da Liga, que foi a um desses mundos mal conhecidos e sem nome não muitos anos atrás, sentimo-nos como um arqueólogo entre ruínas milenárias, procurando abrir caminho entre maciços de folhas asfixiadas, flores, ramos e trepadeiras para alcançar a súbita e brilhante geometria de uma roda ou de um cunhal polido, entrando agora numa porta vulgar e ensolarada para encontrar no interior as trevas, o tremular impossível de uma chama, o refulgir de uma joia, movimento meio deslumbrante de um braço de mulher. 
Como se poderá distinguir o facto da lenda, a verdade da verdade?
Através da história de Rocannon, a joia, o refulgir azulado por um momento, regressa." 

In URSULA K. LeGUIN
O Mundo de Rocannon
(Pág. 5)   

RIO RUMOREJANTE RIO




RIO RUMOREJANTE RIO

Quase momentâneo momento
Como a própria rapidez
O vento que é senhor da planície
Aflorou teus olhos, 
E o mito dos mitos se desfez
Entre sombras e escolhos, 
Para que o reino neles visse
Os mesmos olhos de Inês... 

O sonho é seu direto descente. 
A realidade apenas sua criação. 
E o romance murmura na corrente
Do rio que monda aos egos a ilusão. 

Joaquim Castanho 

CHUVADA DE OUTUBRO




CHUVADA DE OUTUBRO  

Considerada matéria em vão 
Volátil se despeja do céu azul
Essa nuvem, transigente condição, 
Da cinza que navega para o sul. 
Prò aspergir com gotas de frio norte
E itens líquidos de H2O, 
A pulverizar vida sobre a morte, 
Chicotear sombra na terra em pó. 
Que assim te bendigo eu agora, 
Nota solta dum solfejo tecelão, 
Feita harpa e lira mundo fora... 
Réstia de luz, promessa de flor e pão! 

Joaquim Castanho  

O PIGARRO DA DÚVIDA




O PIGARRO DA DÚVIDA 


Com largura sensivelmente superior
Ao seu comprimento, a onda desta voz
Adiposa, mas fleumática no teor
Oscila solidões de solidão atroz; 
E pastosa e arrastada e gordurosa
Lamurienta cava cegos buracos
No silêncio da ocasião nebulosa 
Por farrapos da vida feita em cacos. 
O que quererá ela assim em troca de nós? 
Porque se apraz em não franquear as portas
Mais iguais da comunicação? E sós
Empacamos de lixo suas vias tortas 
De vontades escleroseadas e estreitas
No colesterol da dúvida distorcida,
Entre pingentes e feitiços pràs maleitas
Espantando-nos numa tosse inseticida.


Joaquim Castanho 

MIKHAIL BULGAKOV, Margarita e o Mestre



MIKHAIL BULGAKOV 
Margarita e o Mestre

"O comportamento do gato deixou Ivan tão estupefato que o poeta ficou pregado ao solo junto a um armazém de mercearias, à esquina. E mais atónito o deixou ainda o comportamento da condutora. Assim que viu o gato tentando subir para o elétrico, a mulher gritou, tremendo de raiva: 
– Aqui não são permitidos gatos! Rua! Saia ou chamo a milícia! 
A condutora e os passageiros mostraram-se estupefatos não tanto pela situação em si – um gato subindo para o elétrico! – que não seria muito de estranhar, mas sobretudo pelo facto de o gato querer pagar a passagem! 
O gato, como se verificou, não era solvente como um animal disciplinado. Ao primeiro grito da condutora, parou, desceu do estribo e sentou-se na paragem, alisando os bigodes com a moeda. Mas quando a condutora tocou a campainha e o elétrico se pôs em andamento, o gato procedeu como qualquer pessoa que é expulsa de um transporte público mas que, no entanto, tem, forçosamente, de chegar ao seu destino. Deixando que o elétrico e os dois atrelados avançassem, o gato saltou para a parte de trás do último atrelado, cravou as unhas num tubo de borracha que passava pelo lado exterior e lá foi, poupando assim o preço da viagem. 
Preocupado com o miserável gato, Ivan quase perdera o principal culpado – o professor. Felizmente ainda não conseguira fugir. Ivan avistou a boina cinzenta no mais denso da multidão no cruzamento com a Bolshaya Nikitskaya ou com a Rua Herzen. Num abrir e fechar de olhos Ivan chegava lá. Mas o sujeito escapou-se-lhe. O poeta tentou caminhar mais depressa; rompeu mesmo, em trote, empurrando os outros transeuntes. Mas não conseguia aproximar-se nem um centímetro sequer do professor. 
Perturbado como estava, Ivan, no entanto, admirava-se com a fantástica velocidade da caçada. Vinte segundos haviam decorrido e já Ivan Nikolayevich, depois de passar pela Porta Nikitsky, ficava ofuscado pelas luzes da Praça Arbat. Mais uns segundos e mergulhou em qualquer ruela escura com passeios esburacados onde caiu e magoou um joelho. Mais outra rua movimentada e brilhantemente iluminada – a Rua Kropotkin – depois de uma viela, a seguir a Ostozhenka e mais uma viela, medonha, imunda e fracamente iluminada. E foi aqui que, por fim, Ivan Nikolayevich perdeu o homem que perseguia tão desesperadamente. O professor desaparecera. 
Ivan ficou desconcertado, mas não por muito tempo, porque, de súbito, soube que o professor deveria estar no nº 13 e precisamente no apartamento 47. 
Entrando de rompante, Ivan Nikolayevich voou até ao segundo andar, encontrou imediatamente o apartamento e tocou a campainha, impaciente. Não teve de esperar muito tempo. A porta foi aberta por uma rapariguita dos seus cinco anos que imediatamente se retirou para qualquer parte, sem fazer quaisquer perguntas ao visitante. 
No salão imenso, pessimamente conservado, fracamente iluminado por uma minúscula lanterna de carbono, encontrava-se uma arca enorme, chapeada de ferro. Da parede pendia uma bicicleta sem pneus. E numa prateleira, por sobre os cabides para a roupa, estava um boné de inverno com as compridas abas para as orelhas pendendo. Atrás de uma das portas, uma ressonante voz de homem declamava com irritação qualquer coisa em verso num aparelho de rádio."

In MIKHAIL BULGAKOV 
Margarita e o Mestre
Tradução de Jorge Feio
(Págs. 77 e 78)  

STEFAN WUL, MISSÃO EM SIDAR




STEFAN WUL
MISSÃO EM SIDAR
Trad.  Engº Gomes dos Santos

O primeiro livro de Ficção Científica (FC) que li foi o Admirável Mundo Novo; o segundo, O Planeta dos Macacos; e o terceiro, A Guerra dos Mundos. Porém, o autor de FC com que melhor e mais facilmente concordei, foi com Robert A. Heinlein... E, presentemente, retomei a leitura de Stefan Wul, que iniciei há anos atrás com A Pré-História do Futuro, mas que não é leitura que vou propor, que é, isso sim!, mais propriamente MISSÃO EM SIDAR, livro que estou a ler na tradução do Engº Gomes dos Santos. É uma novela ímpar que vale bem a pena duas ou três horinhas do nosso dia, pela sua lição de vida, pela sua fantasia, pela sua temática, e pelo seu evidente humanismo que é observado exatamente em dois robots que, em parte, também são protagonistas essenciais desta narrativa. 

"Lionel compreendeu que Marcial nada sabia sobre os Xressianos. 
– E se... – começou ele. 
Lembrando-se subitamente que Marcial não podia ouvi-lo devido à sua dupla enfermidade, ergueu a cabeça do companheiro de modo a que este pudesse ler nos seus lábios. 
– São aparelhos Xressianos – repetiu. – E se a ocupação Xressiana tiver sido antecipada! É bem possível! Há meses que não tenho notícias oficiais. 
– Não há tempo a perder – disse Marcial.  – Temos de nos meter ao caminho o mais depressa possível. Vou ser obrigado a mentir aosindígenas a fim de os fazer aceitar a minha partida. 
Os sidarianos pulavam excitados e interpelavam-se em frases entrecortadas pelo nervosismo, enquanto os cogumelos voadores desapareciam por trás da crista das montanhas. 
No momento em que Marcial se preparava para lhe falar, um enorme silvo encheu o céu, ao mesmo tempo que um novo aparelho fazia a sua aparição. Com o seu corpo circular e o reator vermelho-vivo circundado por um aro metálico, assemelhavam-se, com efeito, com um cogumelo. 
– ... Venenoso! – disse Lionel. É talvez a palavra que convém. 
Em vez de seguir os outros, o aparelho efetuou uma grande volta em torno da aldeia. 
Aproximava-se progressivamente do solo seguindo uma espiral imaginária. O barulho tornou-se ensurdecedor. Os sidarianos tapavam os ouvidos e saltavam em todas as direções como um rebanho tresmalhado. 
Alguns esconderam-se nas casas. A maioria fugiu ao acaso para a montanha. Viam-se saltar de rocha em rocha como cabras montesas e descer a toda a velocidade a vertente que ladeava a aldeia pelo lado sul. 
O aparelho estava tão próximo que a sua sombra onscurecia a praça. Duvidando de súbito das boas intenções dos Xressianos, Lionel agarrou no saco mortuário e na cabeça de Marcial, apanhou de passagem a arma e correu para fora da aldeia. Escondeu-se a duzentos metros por trás de um silvado." 
(Pág. 86)  

IMPOSSÍVEL NEGAR EXISTÊNCIAS SUBLIMES




IMPOSSÍVEL NEGAR EXISTÊNCIAS SUBLIMES

Inexistem impossíveis para quem 
Nada espera e só muito queira; 
E, embora a alma tape a boca d'alguém,
Saiba ela que lhe apronto rasteira. 

Impõe, portanto a verdade, como o bem
Nunca esquecer aquela tecedeira
Encoberta que os versos faz também
Sem os escrever, mas dita à sua maneira
Inspirando-os dá beleza à forma. 
Nivela a ânsia com que cada nasce. 
E ao caos obriga respeitar a norma
Sorrindo serena se o poema pasce. 

Isso lhe deve a arte, seja qual seja.
Nada lho paga; às invejas resiste
– E empresta paz à mais vil peleja. 
S'a dor vem, sopra-a... E a poesia existe!

Joaquim Castanho  

Nã-na-na-nã




Querer mandar na alma, é coisa vã, 
Que o não pode sequer Deus, ninguém; 
Mas a minha, desde cedo – desta manhã!–
Que me anda num virote, desalmada, 
Mandando ela em mim, manda nela também. 
Pois nada quer do que eu lhe proponho... 
Nem sossego, quietude, sensatez. 
Porém, se ela sonha, eu também sonho,
E fica a sorrir por tudo e por nada,
Repetindo só um nome, uma e outra vez. 
E já mais de mil vezes me disse... – Nã-na-na-nã!

Joaquim Castanho

SENTIMENTO INCONDICIONAL




SENTIMENTO INCONDICIONAL

Concreto e definitivo,
O tormento da incerteza,
Filtra os dias com o crivo
Da esperança e foiteza. 

E traz quanto as horas são, 
Feitas de tudo um pouco, 
Assim, a fervilhar em vulcão
Plo qual o mundo são é louco. 

Coisa de nada – tanto faz! –,  
E séria de rir um tantinho; 
Porém, o amor, contumaz
S'ajeita e deita em nosso ninho.

Joaquim Castanho 

quinta-feira, outubro 01, 2015

O ECLODIR DA LUZ ESTELAR




O ECLODIR DA LUZ ESTELAR


De que estrelas precisamos
Para ver somente o céu? 
E, se nele, porque vamos
Tentando vê-lo mais perto
Mais azul, mais vivo, certo
Dali, visto do botaréu...

Nada tenho que tanto conte, 
Nada me requer tanto voar, 
Do que as que jorram da fonte
Sendo as estrelas dum olhar.

E nesse estado que me anima,
Seja qual for o anoitecer,
Nasce-me dentro a luz de cima
Tão-somente por teus olhos ver.  

Joaquim Castanho