A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

quarta-feira, julho 29, 2015

ÉLAN VITAL




ÉLAN* VITAL

Quando o ser me estremece
E, cansado de não-ser, bate no fundo,
Procuro em teus olhos
Os olhos que me ensinaram o mundo…

Então, resolutos abrem caminho,
Abatem dúvidas, afastam escolhos
E o mundo seco rejuvenesce;
As árvores ganham cores, ramadas
Viçosas, onde as aves fazem ninho
E as palavras pululam em chilreada.

E digo para comigo, em autocensura:
«Ora!, onde o perigo, se não era nada…
Porquê tal castigo, tamanha secura?!»

E a verve esquecida, envergonhada
Volta a fluir para irrigar o ego rotundo
Como sempre fez essa mesma mirada
Quando me ensinou a olhar o mundo.

Joaquim Castanho


*  ÉLAN VITAL, expressão criada por Bergson e que aparece sobretudo na Evolução Criadora (1907). Esta noção, enquanto impulso vital, designa o impulso fundamental da vida tal como se manifesta na evolução, inventando a partir da matéria inerte formas biológicas capazes de adaptação e tendendo para uma complexidade crescente. O impulso (élan) vital determina, segundo Bergson, uma evolução divergente orientada, por um lado, para os instintos, modelos de funcionamento das estruturas orgânicas especializadas, e, por outro, para a inteligência, função analítica e reedificante inerente à fabricação e utilização prática de objetos artificiais (cultura) ou desembocando na manipulação abstrata de conceitos.    

domingo, julho 26, 2015

BOLHA DE CARINHO




BOLHA DE CARINHO

Às vezes o tempo para...
Fica ali, como uma bolha
Prestes a rebentar na cara
Mal o amor nos vê – e olha.

Transido ou circunspeto,
Hesitante mas sem medo,
Sucumbe em puro afeto
E até de si guarda segredo.

Joaquim Castanho

RAIO DE LUZ MATINAL





RAIO DE LUZ MATINAL

Perdeu-se-me hoje a alma
Num fio de teu cabelo;
Puxei-o, ficou a calma
Do coração, num novelo…

Que a vida dá seus nós
Cegos a quem vê demais,
E se quisermos ser sós
Obriga-nos a ser plurais.

Tudo ela pode, se o quer;
Tudo evita, s’o intenta.
E é cúmplice da mulher
Mal a luz na alma entra.

Joaquim Castanho
  

terça-feira, julho 21, 2015

EXÍGUA BRISA




EXÍGUA BRISA

Todos os poemas já foram escritos.
Estão é ocultos por camadas de pó…
Os poetas mais sábios e expeditos
Vão à tábua dos tempos soprá-los só.

Seu fôlego não precisa de ser forte.
Seu olhar não carece de precisão.
Devem apenas ágeis arredar a morte,
Enquanto os escrevem com a outra mão.

Além disto é querer roubar os deuses,
Tirar-lhes poderes sobrenaturais
Com que a humanidade tenta às vezes
Esquivar-se ao fado dos mortais.


Joaquim Castanho

segunda-feira, julho 20, 2015

DO RECORDAR DOS DOCES ACORDES




DO RECORDAR DOS DOCES ACORDES

Laivos de ontem, brilhos de agora
Espelham no tempo a sua imagem,
Voando dentro do silêncio da hora
Tendo na língua a própria bagagem…

Dizem plo dia fora, e calam se sonham
O que a noite demora na voz d’alguém,
Pra que lhes aflore a alma e nela ponham
Bem-querer por todas as vozes do bem.


Joaquim Castanho

sábado, julho 18, 2015

DIVINO COLO




DIVINO COLO

No reverso desse azul que te veste
Há uma inscrição faraónica,
Dois sinais que à vida deste
E te acentuaram o ser, deram tónica...

A pele lhes toca, e a reconduz
Ao fulgor dum grafito original,
Emprestando até brilho e luz
Solar ao seio feminil, maternal.

Neles Áton bebeu culto, ser, leis;
Conhecimento, poder e parceria.
E s'ora repouso no vale dos reis,
É por crer na carícia do novo dia!

Joaquim Castanho


NEFERTITE – Esposa de Icunáton (século XIV a.C.), primeira primeira dama egípcia a estar presente nas cerimónias oficiais e sacerdotisa de Áton, religião que tinha como única divindade o disco solar ou deus Rá, implantada por Amenófis IV.

sexta-feira, julho 17, 2015

DA MEDIDA DA ETERNIDADE




DA MEDIDA DA ETERNIDADE

Quanto nos diremos ainda
Sob a inesperada presença
Nesse sonho que nunca finda
Nem diminui na existência?

Por mim, di-lo-ei eternamente
Com a eternidade à medida
Desse tempo que nossa gente
Costuma chamar «toda a vida.»

Porque s'a vida (sem desejo)
É soment’essa coisa sem nós,
Então ela começa mal te vejo
E dura pra lá do ficar sós.

Joaquim Castanho

  

TODAS AS VOZES SILÊNCIO SÃO SÓ UMA NÃO







TODAS A VOZES SILÊNCIO SÃO SÓ UMA NÃO


Ouço uma voz. Não é tua isso magoa oprime dói
Rasga o peito acelera o receio a ânsia o medo
Inquieta desinquieta desacerta espoleta e manieta
E corrói em segredo apontando degredo dedo a dedo
Qual penedo de rocha fria que no coração se constrói...

Cada qual sabe porquê eu sei de mim a esmo e sem
Nada nas mãos nada nas mangas nada mesmo-mesmo
Nada quando espero e tu não vens sou ainda mais ninguém
Do que sempre “fôra” fora o feito do peito frito em torresmo
O coração ao rubro de tanto doer a alma o ser o sangue
Que mais espesso e grosso exangue retarda o gesto langue:

Eis o silêncio. Eis o homem perdido esquecido sofrido – eis
A procura incansável de quem laçado atingido tocado ferido
Se busca e se encontra sem ter cuidado urdido narrado crido
Ser esse avassalado e o único plebeu desta república de reis.

Joaquim Castanho

  

ÉPICO VOO





ÉPICO E GÓTICO VOO

Poderei jamais saber por que sou
Assim a pessoa mais feliz que há... 
Que quem nasce pra voar, voa; e eu voo
Em contrapicado, bem para lá do lá,
Que é onde se é sem pedir pra se ser,
Se desvenda o mistério desse mister
Que é viver tão-só para querer viver,
E ser vassalo da rainha que é mulher. 

E que foi mulher antes de ser rainha;
E que mataram para o não ser jamais;
E teve o reino que ninguém mais tinha
Não obstante a dor das línguas e punhais...

Ela reinou, e reinará eternamente
Porque nenhum poder será maior, não;
Porque só ela pode ser a rainha da gente
Que é o povo eleito no reino do coração.


Joaquim Castanho  

quinta-feira, julho 16, 2015

PARCERIA IRREVOGÁVEL




PARCERIA IRREVOGÁVEL

Diz-me tanto que nem eu sei
Esse olhar que eu não digo,
E que hoje não vi mas sigo
Como se fosse minha luz e lei…

Q’ria esquecê-lo – se pudesse.
Nem imaginá-lo – se possível.
Mas se me escapa acontece
Vir o sonho e torná-lo visível.

A vida não é como eu quero;
Foi ela quem decidiu por mim.
E logo que nela desespero
Vem o sonho e diz: calma, somos assim.»

Joaquim Castanho

DOCE SEMENTE





DOCE SEMENTE

O primeiro sentido a nascer
Em nós a morrer é ele também
O último, que o mesmo é dizer
Estarmos ainda em ventre de mãe
E já tudo ouvirmos muito bem.

Então, porquê esse estranhar
Que ao ouvir aquela voz amada
Se nos ponha o coração a pulsar
E parta sem freio à desfilada?

E a mim, acontece-me sempre
Que tua fala soa; nunca é vã.
E creio até ser ela o ventre
Da felicidade e do amanhã.

Porque se assim não fosse sequer
Jamais o sorriso me nasceria
Só por ter escutado a mulher
Cuja voz planta em mim a alegria!

Joaquim Castanho


SILÊNCIO QUE DÓI




SILÊNCIO QUE DÓI

Sofrer é isso:
Sentir a falta,
Perder o juízo
Se me assalta
Tua ausência.

Que na viva foz
Há a demência
E desespero vil,
Por não ser tua voz
Que ouvi das mil
Ouvidas a sós…


Joaquim Castanho

sexta-feira, julho 10, 2015

DUPLO TRIANGULAR, A ESTRELA




DUPLO TRIANGULAR, A ESTRELA


Ontem, a esta hora, dei trinta maidins prò teu colar
Na loja do artesão Maïa ao lado do templo,
Arina irradia agora luz no teu pescoço de gazela
Descem raios como plumas até ao vale dos seios
Brilha-te o sorriso quando altiva fitas o ocaso
Despes o violeta ao lusco-fusco e ensinas o ventre
Às gotículas de água cristalina que te perlam a derme,
Mulher lei de ler cada verso de teus cabelos nos ombros
Descidos, o desalinhado solto de rimar-te o dorso
Quando fletes o arco do tronco no disparo imediato
O queixo entre espasmos de gritar a nobreza sôfrega
Soberana dum vulcão que nos explode dentro a pulsar
Convulsão de entrega no rigor do gesto anunciador
Grito gritado de implorar o sonho febril e sequioso...

Os seis ângulos em nós reunidos plo toque da alvorada
Nascente planície da carícia líquida de mel de tua púbis
Flor de esteva pintalgada de rubras lágrimas ou de rubis
Emaranhada mata de mistério e frescura ensolarada!

Joaquim Castanho

BAILIA DA ALMA FELIZ




BAILIA DA ALMA FELIZ

Em Ur, essas vestais da eduba
Que Shara e Inanna patrocinam,
Dançam nos sonhos de quem incuba
Os ideais que a todos os céus iluminam…

São também elas luz, ninguém o nega,
Investidas no brilho da meiga Arina,
Que é saber e amor que nunca cega
Amadurecendo a mulher desde menina.

Porque então, se seu beijo nos alcança
E sorriso, e liberdade nos inventa,
Só a doce magia da alegria nos tenta
A alma que em verdade dança, dança e dança.

Joaquim Castanho


  

APELO DE PELE




APELO DE PELE


Reconheço que no dia-a-dia há nuvens de poeira 
E nem tudo será só pura e singela transparência
Pois toda a gente tem segredos seus inconfessáveis
Difíceis de dizer, de calar, de escrever, de expelir
De deixar esquecidos numa qualquer rua, esquina
De grafitar nas paredes daquelas casas em ruínas
De abandonar no banco de jardim ou gare ferroviária
De acondicionar entre os livros da biblioteca pública
De encaixotar no sótão com demais trastes e bibelôs
De meter na gaveta das trivialidades preciosas
Junto aos cromos, aos porta-chaves, e fotografias
Calendários velhos, bilhetes de teatro ou concertos
Recortes de fait-divers, catálogos de exposição, clipes
Botões invulgares, relógios avariados e colchetes ímpares,
Embora se tenha esforçado capciosa e exaustivamente
Fintando-se amiúde ou tentando desmascarar-se
Pra nada permitir oculto de si e de seus semelhantes...

É risco plausível, sem dúvida, porém deixar de o correr
Somente porque nos estreita essa indiferença humana
Tão caraterística de nós enquanto nos medimos forças
Acerca de tudo e de nada, quais molas de propulsão
Disparadas no inverso do modo, aflige-nos eficazmente:
E até há quem grite «olha pra mim, belisca aqui – vês... sou gente!» 


Joaquim Castanho

EXPIAÇÃO E HORA DE MOSCA




EXPIAÇÃO E HORA DE MOSCA

Pela penumbra das pálpebras
Descaídas em desvãos de sono,
A bela cigana dos zunzuns sem dono
Dilui-se nas sombras por puras álgebras,
Contas imediatas, cálculos abreviados
Num Excel de intenções por esclarecer
Perdidas em condomínios fechados,
Portas de mistério, recantos do dizer.  

A pronúncia descai-lhe da língua fugaz
Num eco de cante morno de brisa do sul
Como quem se balança pelo compasso da paz,
De braço dado na planície sob o céu limpo e azul
Dos dias impiedosamente planos e quentes e vis
Que nos fazem sentir saudades das tardes primaveris.  

E que, porém, atentas como as demais escutam ociosas
Postas nos recatados lugares dos silenciosos vagares,
Requerendo uma sesta simples na futilidade dos ares
Mornos que se esmeram em versos de zunidas prosas.

Joaquim Castanho
  

TACTO PREVARICADOR




TATO PREVARICADOR

No verão é fácil deixar escorrer o verde
Expandir-se em amarelos-torrados
Pelas bruscas inversões na paleta da espera
Pão de trigo das mulheres de pastel perdidas
No restolho alinhadas em possessões trágicas
Sonhando nevoeiros pròs jardins interrogadores.

Há quem seja a nave entre o verde e o azul
Cujo olhar apreensivo são estações confundidas.

Eu, que sou apenas o comprador dum bem ou serviço
E ouso o pousar da folha sobre o espaço comum
A corroer o ritmo aos minutos na brisa soalheira,
A apontar o dedo ao esquecimento nesta vida,
Colorindo as desmaiadas vozes da clepsidra
Num toque que quase decepa realidades
(Mesas de taberna com cadeiras de lona
À realizador sentadas sobre a arquitetura da coreografia)

Permito-me assistir ao filme numa história de amor
Na qual sou o único protagonista sem contracenar com ninguém,
Registando o vaivém dos e das figurantes com e sem contrato
Para lhes inscrever o nome no guião que não escrevi também,
Ainda assim me não seja inculcado crime de apoucado tato.

Joaquim Castanho   
  

SUBLINHADO INTERIOR





SUBLINHADO INTERIOR

Com a alma bem atada
Ao destino que nos quis,
Só retenho a mirada
Porque teu olhar me quis

Devolver anseio, apreensão
Nas asas brancas do giz
Que me gizou o coração.

Joaquim Castanho

PROVA DE ESPERA





PROVA DE ESPERA

Minha espera indolente
Aguarda à porta de mim…
Fixa os olhos na gente,
Espreita seu próprio fim.

E nesse depor constante
Propõe-se cruzada nova,
Alcançando mais adiante
Outra espera como prova.

Joaquim Castanho

TEMPERILHO INTEMPORAL





TEMPERILHO INTEMPORAL

Podendo dizer por que calas os lábios
Colados contra o tempo num só golpe
A destreza na planura intensa, língua vil
Abre o ovo do silêncio, vá!, vá!, parte-o
Assim pla frágil gema do dizer, inconformada:

Sê exemplar. Escuta a luz silvestre
A dançar nos subúrbios do silêncio.
Desvenda o ventre ao umbigo da tarde.

Reconhece, que é bom ter amizades, desenhar
Intempéries num sentimento possível
Mudar o mundo e as consciências com elas
Destroçar a nudez crua e anónima dos nomes.
Que é benéfico aventurar nossos destinos
No espelho partido em que nos consomes...

– Diz-lhe que somos o grito que ora arde,
Que não sabemos o que é a morte nem o receio;
Que somos a liberdade, o princípio, o fim e o meio;
Mas sobretudo que somos donde vimos...

                                                                                       e nunca desistimos!


Joaquim Castanho