A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

quinta-feira, maio 24, 2007

Mãe

Dizem que morreste de neoplasia...
E fisicamente, isso é verdade. Mas quase juraria
Que tu, que trouxeste sempre apertado o coração,
Vieste a morrer, sim, um dia
Sobretudo de incomunicação.

Nunca disseste
Ao mundo o aborto que fizeste
Nem a culpa que te ardia
A febre, nascida da hemorragia
Que te prostrou desde esse dia
A sofrer sozinha a dor agreste
Do pecado, e da condenação.
A quem puseram o apodo de vadia
Só porque não pudeste dizer NÃO.

Amar traz sarilhos
E por vezes até filhos
Para os quais não há condição;
Contudo, seriam mais leves os trilhos
Mesmo pejados de cadilhos
Se esses filhos não fossem também filhos
Da opressão.

Deste sempre o teu melhor
Mas morreste na solidão;
Que quem é traída no amor
Vê apenas, nos demais, suspeição.

Tudo te foi perdoado, mas não sabias...
Até aquela falta de vacinação,
Os processos que contra mim movias
Onde o único crime que me conhecias
Nascia da febre da culpa e da imaginação...

Foste breve, mas durou-te a vida,
Morreste pouco após eu ter nascido.
Agora, que já nada de ti resta além da campa tida,
Querem raspar-te da memória, a família havida
Sob a dura e fria pedra do olvido!

No entanto eu, sei-o bem
Que jamais fui filho de outrem;
E por mais que digam razões de esquecimento,
Enquanto em mim houver alento
Nunca te hei-de esquecer – Mãe!...

No teu ventre quatro corações bateram
Mas deles os expelistes quando "nasceram"...
Sendo fruto de um só que te bateu no peito
Onde lado a lado nunca outro bateu do mesmo jeito,
Ecoaram eles longe e não te ouviram
Quando o teu por eles chamou... E muito menos souberam
Que o carinho que não te deram
Também a eles zurziu – e matou.

Portanto, quando morreste, não foi só a ti que aconteceu
Essa neoplasia de sequela antiga;
Morreram igualmente e também
Todos quantos debaixo do mesmo céu
Se esconderam sob o véu
De não querer-te como amiga.
Os que te olharam e não te viram,
Os que esperaram receber e nunca nada te deram,
Os que pediram mãe e a não tiveram,
Porque preferiram ser filhos de ninguém.

Os que, queiram ou não, apenas são gente
Porque se no teu coração tiveram raízes
Nele se fizeram coágulos, varizes
Negando ao teu amor
O direito de ser cárnea rosa, pulsante flor
Que também queria ser semente!
Silêncio sepultado

É quando no silêncio da treva o suspiro
Se liquefaz e escorre entre o empedrado e a parede
Arrastando com ele na fúria das valetas e fossas reais
Aqueles objectos imprescindíveis mas já imprestáveis
Os boletins do totoloto, os talões de multibanco, os canhotos
Os maços de tabaco vazios, as latas de conserva com a tampa encaracolada
Os calendários do ano passado, os lápis curtos mas rombos
As beatas de cigarro desbotadas de amarelo nicotina, inchadas
Pela humidade quase a rebentar no filtro junto à marca de batom,
Que os suspirantes e os suspiradores aprendem o olhar
Colam as retinas embaciadas contra a vidraça controversa da alma,
Apostam-se tudo ou nada, arriscam-se no jogo da falta
Enleiam-se de saudade, prestam culto aos ausentes.

No entanto, se alguém disser que esteve lá e sobreviveu a isso
Que consegue andar na rua desempenado entre os demais
Sem se sentir moribundo esquecido entre velas e cílios
Indiferente ao toque de transeuntes e sorrateira inspecção
Discreta, subtil, apurada dos vendedores de fruta e bijuteria
Então, é porque mergulhou abrigado sob escafandros descomunais
Esteve submerso e nunca soube onde, não lhe faltou o ar nem o pé
Esvaiu-se em nada entre insignificâncias, ninharias, coisas nenhumas
Apenas quis pedir desculpa por existir sem o saber, desconhecendo-o
Quis impressionar os mortais, inspirar-lhe compaixão, vitimar-se
Solicitar-lhe acuidada teima de perdão, implorar piedade.
Porque de lá ninguém regressa sozinho, o suspiro persegue-o,
Ninguém traz a morte dentrada fora de si, impregnada na pele
Como um cheiro que nos apodrece e fica por isso mesmo
Jaze impune, seguro, garantido pelo invólucro de chumbo eterno.


Ninguém.