A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

segunda-feira, janeiro 26, 2015

O PANÓPTICO INCINFORMADO


𝓸 PANÓPTICO INCONFORMADO
                 Joaquim Maria Castanho




Ontem, na tentativa de conviver de perto com aquilo a que comummente chamam “espécie humana”, fui até ao Café. Após bebericar da típica e apenicada chavenazinha a água castanho-escura com creme espumoso e dourado denominada “Bica”, deixei-me afundar na discreta leitura de um dos jornais do dia que adquirira no Quiosque Jardim. E afundar é a palavra exata. Precisa. Principalmente porque ainda não chegara às palavras cruzadas, que são o suprassumo ou tiro-e-queda na matéria, já ninguém estranhava ou notava a minha presença. Fora assimilado…

O dia acordara assim-assim, que é o tal jeito provinciano de referir tudo quanto é sonso e intragável mas não nos importamos de consumir, engolir, tragar, porquanto tem tanto de saber a nada como de a coisa nenhuma. Todavia o céu estava azul, daquele azul caraterístico dos desenhos animados, embora que polvilhado, aqui e ali, de farrapos de esbranquiçadas nuvens, ao caso, e, por sinal ou influência do modo vivente local, bem pouco apressadas.

Dei o meu melhor no apagamento, estratégia aprendida pelo íntimo convívio, diário e constante, com a minha aranha doméstica, que ocupa o canto inferior direito da janela do quarto, e que depois de feita a teia se apaga nela não fazendo outra coisa senão esperar que alguma mosca incauta ali se enleie. Então, salta-lhe em cima, e injeta-lhe, numa ferroada rápida, eficaz, profissionalíssima e fatal, o narcótico que há de adormecê-la a fim de a poder sugar paulatinamente, degustá-la viciosa e demoradamente como a substancial iguaria que para ela, sem dúvida, é.

“Há quem suba a descer”, conforme referiu Florbela Espanca no conto A Paixão de Manuel Garcia, e é inequivocamente esse afundar de mergulho no discreto areal do anonimato que o impulsiona e motiva, pescando pequenas pérolas das conversas alheias, desgarradas frases que o acaso vai plantando nas mais variadas pronúncias e falantes, enunciados que entretecem a malha significativa do momento imediato, inaudita até então, sentenças e expressões invisíveis e desnotadas antes ainda porque já ouvidas, ou mesmo que anteriormente ditas e escutadas terão passado a leste da acuidade, seguindo diretas para o esquecimento e apagadas para que outras lhes sucedessem de igual calibre e quilate, garantindo o lugar e primazia às atuais capturadas, presas e troféus dum veterano caçador de recompensas sempre pronto a torná-las reféns da sua vontade de renovar, e reciclar, o conteúdo do gavetão dos analíticos e lexicais discursivos, com exemplares indesmentivelmente originais e inéditos.

Sobretudo porque nessa entrega ao significado de cada uma das recém-captadas, enquanto frases comuns e insuspeitas que alcançaram o Olimpo da particularidade incomum da genialidade criativa, nesse trotar de sílabas gregárias na mecânica dos ouvidos pelos paralelos molhados do calçadão dos enigmas e mistérios, nos adensamos na semântica das horas breves e fúteis, tornando-as úteis e prazenteiras, industriando a alquimia de tornar precioso o que antes fora vago, ordinário, vulgar e medíocre, concedendo-lhe alforria e estatuto de insubstituíveis, quando notoriamente corriqueiras e descartáveis anteriormente seriam, por mais bem-ditas e pronunciadas que tivessem sido de acordo com os requintadíssimos superlativos da dicção.

Portanto, entrincheirado na leitura do diário matutino segui de soundbyte em soundbyte, saltitando de comentários para apartes, de confissões para desabafos, de apreciações para argumentos, de conclusões para considerandos, de apelos para invetivas, em velocidade de cruzeiro, em passeio, ladeando paralelo a vitrina e parede desse longo e circular aquário que é o meio-ambiente, o nosso raio de ação e visibilidade própria, varrendo a 360 graus a atividade da flora e fauna fleumáticas da bolha observável, perscrutando a evolução das formas e sonidos, os sublinhados e expressões com propósito de significação, involuntários uns, intencionais outros, de natureza prefixa ou sufixa segundo o enraizado espontaneamente estabelecido. Uns referir-se-iam ao universo da e das políticas, das noticias do Jornal da Manhã como dos acontecimentos do passado recente; outros, às atividades da urbe no fim de semana, às ocorrências da vizinhança, aos pequenos escândalos e comezinhos atalhos nos privados da convivência, às situações e atitudes de familiares, aos serviços e ofertas de cafetaria, e reparos aos afetos e desafetos em geral, mas principalmente acerca dos ausentes que costumavam estar presentes. Ou que ganham hegemonia no presente pela sua ausência.       

Porque na tentativa de absorver a realidade até ao absurdo, o ser humano, como qualquer indivíduo que se apraz pertencer a uma espécie que insiste em ser distinta das demais, mas suficientemente numerosa para consignar às diferenças entre si essa mesma distinção, por grupos, ficheiros, tipologias, conforme o cariz das avaliações, quer elas sejam elaboradas por empatia como por estranheza, por compreensão e semelhança, como por aversão à matriz, contraste ou intolerância, não se coíbe de recorrer à clandestinidade, ao disfarce, à infiltração, ao subterfúgio, para melhor conseguir a dita apropriação do real, quer social, como pessoal e circundante, ainda que este seja exemplo incontestável de uma ficção ou conglomerado de ficções, teorias e delírios místicos. E, com os olhos visivelmente ocupados na decifração alfabética, os ouvidos ficavam-me totalmente livres e recetivos à absorção de todo e qualquer estímulo sonoro passível de descodificação que ocorresse, distinguisse, discernisse entre as mensagens flutuantes as que, por natureza, relevância e consistência, eram propícias ao investimento analítico. Aliás, fora na mira de tal operação que ingerira a cafeína depois do substancial e nutritivo pequeno-almoço que tomara em casa, e que me concederia todo o tempo do mundo para dedicar-me em exclusivo à tarefa da perscrutação, sem pressa, sem ansiedade, sem sofreguidão, ou restantes causas que nos levam a entrar pelos atalhos inimigos da lucidez: precipitações.

Por conseguinte, ali estava eu como se sempre ali estivera, plantada peça de decoração ou móvel da casa fosse, enraizado de pedra e cal, embaucado e de matutino em riste, resguardado de congeminações e alusivas considerações adversas, recatado, pronto e sadio prà função, recetível ao dito, disponível e atento prà frase que soasse e viesse, viesse como viesse, misturada ou sem ruído, embrulhada ou despida de qualquer ganga marginal, límpida ou obscura, com ou sem preâmbulo, com ou sem epílogo, com ou sem rótulo, prestes a consumir com sucesso e galhardia um oitavo da vida, que se resume sempre à terça parte dos 12 avos que o carnaval é. À esquerda, à direita e em frente ninguém suspeitava das intenções reais perante a coreografia do momento, acaso sobre acaso dispostos sem ordem nem objetivo definido, tudo espontaneidade simples, pura e dura, desprovida de intencionais arranjos, à flor do ar e fluida e plástica e flexível e moldável como a primitiva argila da nossa essência gregária.

«Tenho que ir fazer análises», afiançou a quase-idosa mesmo ao lado, da terceira mesa prà direita, assim mesmo à babugem do orelhame, «pois o meu filho diz que quando nos doem os pés, é porque temos o colesterol elevado… E a mim têm-me andado a doer ultimamente; parece que vou sempre a pisar gravilha quente, Gracinda», que era a companha que a escutava, embora aparentemente mais nova e bem-conservada, e que, de frente para a falante, mexia-mexia-mexia-mexia o café como se temesse que o dito coalhasse, talvez esquecida do que fazia, abstrata, e com aquele semblante de quem viaja por outras paragens que não aquelas onde deveras está. De gestos automáticos, mecânicos, tipo máquina de operações repetitivas a que se esqueceram de desligar no interruptor, e que só pararia quando a pilha descarregasse totalmente.

Mais adiante, e do mesmo lado, entre os assíduos ou habitués e os fumadores, que foram literalmente empurrados para os fundos, próximo da porta das traseiras, marginalizados, qual retaguarda da direita conservadora do lugar, dum casal de meia-idade que parecia ser igualmente de meias-posses e de aprumado mas já percetivelmente usado vestuário, após pousar os sacos das compras no supermercado vizinho, reparou ele que «nesta cidade nunca há nada. Mas quando há, ninguém vai… Viste ontem quantos estavam a assistir à música no coreto? Eram mais os tocadores da filarmónica, dos que a ouviam de fora», puxando uma cadeira da mesa atrás para ajeitar melhor um saquinho. «Pois é», assentiu ela, «e os que vão são sempre os mesmos. Só lá vi gente que esteve anteontem no museu, a ouvir o coro.» «Se calhar são da mesma capelinha que promoveu a gaitada» anotou o parceiro. «É sempre assim: promovem o evento, atiram os foguetes, e ainda são os mesmos que vão apanhar as caninhas. Seja o que for» garantia, e dando-me a oportunidade de confirmar como nas parcelas do território onde imperou o latifúndio e o condado, o acerto senhorial e a grande propriedade, a marcação do gado extravasou das unidades de produção pecuária para a esfera social, para a mentalidade urbana, corporativa, mais ou menos cosmopolita, efetuando essa transferência por meio da metonímia e da metáfora, que são os tropos mais recorrentes do pensamento mágico, numa modalidade simplista da regra dos três simples: se fulano tal frequenta o pasto da casa tal, então tem a sua marca, o que lhe permite frequentar todo e qualquer pasto da mesma casa. Precise ou não, goste ou abomine. A coisa não é grave, ainda que primitiva e secular, e não é caraterística desta ou daquela terriola em especial, antes está generalizada de alto a baixo do retângulozinho portuga, nele constatável e visível, senão transmissível de geração para geração sem qualquer esforço ou sacrifício.

À esquerda, não distante nem revolucionária, mas também não imediata, dois idosos – inequivocamente avançados na idade – e uma senhorita razoavelmente muito mais nova, bem-conservada e sadia, porém visivelmente alheada da conversa, como quem já conhece a cantiga de cor e salteado e lhe dispensa o remake, ou está cansada de dar para tal peditório, e lengalenga, avaliavam as perspetivas de êxito da Feira das Cebolas, efeito muito considerado e frequentado noutros tempos mas a que os hipermercados estouraram com as habilidades, aventando um deles, o com óculos castanhos de massa e lentes grossas, ainda muito bem encabelado, por sinal, com pelos espessos e fortes, cerdosos, luzidios e prateados, que «se não chover durante estes dias, vão-se vender aqui umas toneladas boas de cebola, lá isso vão… sobretudo à noite, que é quando o pessoal que trabalha pode vir. Que trabalha e pode comprar», e piscou o olho sabido para o compincha. «Isso, sim!... Antigamente, era aqui que a minha gente comprava cebolas para todo o ano, era. Mas agora, vai comprando conforme lhe vão fazendo falta. São mais baratas, e não lhe apodrecem. Também são mais rijas, principalmente as espanholas… Mas são cebolas na mesma, e ninguém lhe mete muito o dente em cruas!»

Este último, careca mas armado de óculos metálicos e lentes progressivas, que refletiam a claridade da rua sempre que abanava a cabeça, que devia ter sido comerciante antes de se aposentar, de frente para a janela, avaliando com preceito de negociante como de político, adiantou ainda que «naquele tempo justificava-se, e dava um jeitão. Mas agora, não. E fazer esta feira, é promover a fuga ao fisco, oh, se é! Durante estes dias vão passar de mãos quilos e quilos de mercadorias, e nenhuma vai pagar IVA nem averbar fatura!»

«Eh-eh-eh-eh! Bem lembrado. É que nem ginjas!», redarguiu o primeiro. «O mais engraçado, é que é um órgão público, uma autarquia, a câmara municipal a instigar à fuga ao fisco, essa é que é essa!»

«Ou seja: a expensas do erário público, organiza-se e promove-se um evento onde o capital circulante vai todo parar à caixa 999999999999999. E tanto faz estarmos em crise, como não: faturas viste-as! O IVA delas, das cebolas, batata. Vai lá IVA, lá vai! Este ano o valor de contribuições estimáveis da atividade da economia paralela, só ele, pagava a nossa dívida à TROIKA: 45 milhões de euros. E a câmara? Pois.»

«Isto é tudo a mesma cambada… Carregar nos velhos, nisso estão todos de acordo. Agora, fazer o que devem, só fazem se for decretado pelo partido deles. E nunca é, que a maioria só tem partido, quando precisa dos favores de algum dirigente. Se precisa, filia-se, e paga as quotas. Se não precisa, procura outro. E ele há tantos! Depois no governo, só há gaiatos…»

«Gaiatos uma pinóia, que gaiato fui eu e aos oito anos já trabalhava desde o nascer ao pôr-do-sol, com o meu pai e os outros homens na padaria do meu tio, e mal pago, que ele era sovina com’às cobras. Fazia cá falta era outro Salazar. Havias de ver como aprendiam a marchar certo e direitinho!», sentenciou o bem encabelado, mostrando o branco dos olhos para sublinhar o vaticínio. Mas a moçoila que os acompanhava nem reparou no trejeito, e fez o ponto da situação, que, conforme esperava, foi ratificado por ambos: «Eu já bebi o café, e vou ali ao supermercado aviar a lista. Quando me despachar, venho aqui ter, ok? Não saiam daqui, senão faz-se hora de almoço, e a gente não chega a tempo.»

Eles que «sim filha, vai descansada». Mas, embora os dois tivessem anuído ao mesmo tempo, com a cabeça para baixo e para cima, apenas a voz do segundo se ouviu, talvez a dar a entender que era o mais civilizado e citadino de ambos. E notava-se, pela modernidade dos acessórios, e pela falta de cabelo, a que o pentear quotidiano e lavagens foi tirando força e número.                      

Nada há que seja simples nesta vida, há é olhos rudes e espíritos tacanhos que não conseguem enxergar a riqueza sútil e intrínseca dos pormenores dum detalhe, é a premissa que supervisiona a atitude de quem se considera observador de mão-cheia, quer dizer, de olho vivo e raciocínio sagaz, expedito, porém não nos devemos esquecer que o perfeccionismo e a acutilância no detalhe também leva à dispersão dos intentos, vendo ele tantos pormenores, muito facilmente esquece o fim maior a que se propusera. E é lógico que assim seja, como o confirma a prática, porquanto nesse ínterim eu já nem fazia o menor gesto de disfarce, entregando-me de corpo e alma, por assim dizer, à única tarefa de escutar, talvez mesmo pondo a cara à banda para melhor ouvir, descuidado, e nas tintas para que reparassem na minha curiosidade ou não. Ser apanhado em flagrante não seria grave, uma vez que todos e todas o fazem; mas chamaria a atenção dos clientes da casa, pondo-os de pé atrás quanto ao cromo e suas intenções, o que diminuiria a fidelidade e nutrientes das falas, como dos seus conteúdos. E eu queria algo vivo e substancial, pelo que virei duas ou três páginas do jornal, destaquei o suplemento, folheie-o, sublinhei dois itens da programação televisiva. Fui ao balcão buscar mais uma garrafinha de água. Perguntei as horas ao barman. Tudo coisas normais, e que poria quem quer que fosse a espantar a pulguinha de detrás da orelha, se acaso lá se tivesse instalado.

As falas são o que são, bastantes trazem ruídos e mais barulhos à volta, é certo e sabido, e para as despirmos dessas gangas temos primeiro que concentrar-nos neste ou naquele timbre, desligar dos demais, para lhe discernirmos a suculência. E das bandas dos fumadores, três ou quatro raparigas faziam-se notar pela vivacidade das expressões, bem como pelo rir descomplexado e metálico, sem ser estridente todavia, que emitiam. «Eh-eh, põe lá isso onde estava. Então não foste tu que disseste ontem que ias deixar de fumar?»

«Fui. E já comecei: hoje já nem comprei. Vou fumar só à crava. Quando não tiver a quem fazê-lo, fica cumprida a promessa!», esclareceu a interpelada, uma cachopa cheia de carnes e cores, bem nutrida e sem-papas na língua.

«Espertinha… Não tens piada nenhuma» glosou a primeira que falara, dando um safanão ao cabelo castanho claro, quase louro, comprido, que espanejou o ar em redor como uma crina de inquietude. «Hoje vemos o jogo, à noite, no sítio do costume?»

«Vemos», respondeu a terceira, fazendo um Yes com o braço direito, de punho fechado, braço dobrado e de cima para baixo, com quem faz um afundanço de cotovelo. «Nem podíamos faltar!»

Claro que podiam, pensei. Se faltam às aulas para vir prò café, muito mais facilmente podiam faltar a um jogo de futebol transmitido pelo canal desportivo, num estaminé qualquer como aquele em estávamos, senão precisamente nele. As calças de ganga, agarradinhas às pernas, e a saltar a ribeira, desenhavam-lhe as formas, que suspeito serem só febra de saudável têmpera. Cabelos castanho-escuros, face abonecada, olhos de sevilhana, amendoados, quase negros e destemidos. Quis-me parecer que seria a mais calma das três, mas errei no palpite redondamente. Porque, tendo tocado o seu telemóvel, ei-la que se levantou num ápice, e atravessou o café para ir atender no exterior, como se estivesse numa passerelle, dando à anca e fazendo trejeitos de quem desfila perante seleta plateia, gingando sensual, o dedo indicador da mão esquerda nos lábios a fazer biquinho, destilando coqueteria nos esgares à direita e à esquerda como Lolita sabida. Tive pena de não poder ouvir a conversa ao telemóvel, que prometia ter sido fogosa e folgada, sobretudo porque quando regressou, passado algum tempo, trazia aquele brilhozinho nos olhos de que fala a canção do Sérgio e o rubor nas faces de quem viu passarinho novo.

No lado dos fumadores, mas na fila oposta à das cachopas, um trabalhador da coisa mental, afanava-se com desembaraço e empenho, fazendo contas numa pequena calculadora, cujo resultado anotava numa folha Excel. Deduzi que fosse contabilista, mas depressa arredei a ideia. Creio que era antes professor de gestão ou disciplina próxima, talvez da escola de hotelaria e turismo, ou mesmo da de tecnologia e gestão, e que preparava alguma aula ou exercício para os seus educandos. Fato aprumado, azul-escuro, camisa creme e gravata verde-acinzentada, corte de cabelo à executivo e óculos dourados de aros retangulares, parecia ter sido recortado de uma revista de marketing e relações públicas. Impassível, sem a mínima expressão facial, consultou duas ou três vezes os livros que tinha ao canto da mesa, bem arrumadinhos, um sobre o outro, cantos com cantos em simetria perfeita, e, metodicamente também, anoto-os aqui e ali, copiou algumas passagens para a margem da folha de cálculo, fez sublinhados (que deviam ser retos e exemplarmente esgalhados, mas que não pude ver pela distância que nos separava).

Entretanto entrou uma sujeita que tinha tudo para ser uma dama das camélias, mas como os tempos mudaram, ficara incompleta. Bem-vestida, mas sem coerência de conjunto, rendas e folhos, saia travada, saltos altos, mala de mão, lenço rameado na cabeça, e que foi direitinha ao lado dos fumadores. O maço era comprido, e os cigarros, branquinhos com filtros cremes, miúdos e delgados. Fumou um com ansiosa pressa, em aspirações prolongadas e expirações em picotado, expelindo em duas ou três porções o fumo que engolira só duma vez, foi ao balcão buscar o café, fumou outro com mais calma e, ainda mal o tinha terminado, acendeu um terceiro que, esse sim, foi já não como quem ingere sofregamente algo que lhe faz falta, mas como quem fuma somente para ver expirar o tempo, evoluindo numa ténue espiral cinzento-azulada até ao teto.

Foi então que olhei o relógio de pulso. Passavam dois minutos da hora do autocarro. Havia-o perdido, e teria que esperar pelo seguinte, que passaria daí a três horas. Além do café, da água e do jornal, que perfaziam uma soma de 2,50 €, ainda ia ter que almoçar fora, coisa que nunca ficaria por menos de 8,00 €. Despesa desnecessária. Inútil. Não programada, nem figurara no meu planeamento inicial para o dia. E, tudo isso, porque caíra na expetativa de que as melhores frases e tiradas literárias, não são as que inventamos com propósito explícito e sobreaquecimento das celulazinhas cinzentas, mas as que vêm ter connosco por acaso, enquanto estamos que nem esponjas ou plácidos batráquios a ver voar as libelinhas. Pufff! Qual nada, a realidade só é frutífera quando queremos reproduzir outra realidade inferior a ela, pois que, se pretendemos criar uma ficção, só quando nos alimentamos também de ficção o resultado é rentável.

Não me posso conformar… Gastei eu um dinheirão, perdi tempo que jamais recuperarei, e o que consegui? Nada. Trinta parágrafos de ninharias que, se bem espremidos, não valem a traição dum poeta num verso que capturou a um poema esquecido e antigo que encontrou numa coletânea ou almanaque do século XVIII. Tenho que deixar-me disto, ou ainda acabo por ser publicado por alguma editora de best-sellers e títulos de autoajuda. Enfim, errar é humano, mas perder tempo com saloiadas é desperdício de talento!                          

  

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