A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

quinta-feira, janeiro 22, 2015

A CARTA ESQUECIDA

A CARTA ESQUECIDA





“Mas as crianças nascem de duas vozes que se encontram,
e não só de dois corpos (...) – TEOLINDA GERSÃO, in O Silêncio

Se quando uma pessoa se levanta tarde, quer tomar banho mas não tem água, sai à rua para beber café e não há luz, e na esquina entre a residência e a pastelaria lhe cai, vinda das alturas agrestes do plúmbeo céu, à louquérrima velocidade de um meteorito, a larada ocre e esbranquiçada de uma ave em altos voos, sobre o braço de confirmar as horas, ao contorcê-lo nesse gesto do cotovelo em riste a quilhar os flancos ao momento, e lhe esborrata o pulso e o relógio, ou se instala ansioso num banco do passeio público para anotar as desgraças que lhe aconteceram, em apontamento derradeiro e testemunho duma biografia que roçagou as faldas da tragédia, incluindo nos mais ínfimos pormenores, mas não o pode fazer porque se esqueceu da esferográfica em casa, coisa que nunca antes lhe acontecera, reparando enfim nesse instante, contristado, que a equipa de futebol da sua predilecção joga ao fim da tarde com o time rival, derby local ainda por cima, na disputa dum modesto segundo lugar na tabela classificativa, então o conveniente mesmo é este indivíduo ingerir um calmante forte, daqueles que põem sem custo qualquer cavalgadura a dormir, meter-se no quarto, fechado à chave e sem música, sob as mantas e com a almofada sobre a cabeça, até que o clique do calendário retruque os 01 minutos das 00 horas e dê entrada ao dia seguinte, e este lhe traga o consolador esquecimento da data, para que ela jamais se repita, nem sequer na próxima encarnação... Se!
E mais: suponhamos igualmente, que ao preparar-se esse mártir para engolir as pílulas, vai por elas à banca de cabeceira, esviscera as gavetas, em desespero atira ao chão cada caixa vazia, depois de as esmagar, amarfanhar, espremer e espreitar duvidoso o seu interior, ainda com a posologia dentro, mas sem encontrar uma única drageia que tomar, acumulando em si a inaudita raiva da desesperança do fim do mundo, a agonia do descrédito no futuro, sem encontrar absolutamente nada parecido com comprimidos, tampouco uma pastilha para o mau hálito que seja, então que fazer? Sim, que fazer? Sobretudo se esse gajo fosse eu?!... Exactamente: que fazer? – digam-me!...
Portanto, fui. E meti-me, após a desdita que acabei de contar, a dar volta aos papéis, à tralha acumulada nas prateleiras e caixotes, separando uns dos outros sem qualquer critério, embora que disposto a deitar ao lixo três quartas partes deles, e isto a somar por defeito!
Ora, de entre os ditos condenados que ia deitar fora, deparei com uma carta que te escrevi, mas não chegara a enviar-te. Machucada, enrugada, amarrotada, manchada, ditava-te uma infinita lista de queixumes, admoestações, menosprezos, além de evidenciar aquele tradicional amarelecido que o tempo empresta aos escritos esquecidos, e a quem as recordações incutem novo significado. Aquela tonalidade de nostalgia que nos prende ao medo de esquecer. O receio de ficarmos abandonados pelos sentimentos mais profundos.
E não sei como, dei por mim a ver-me novamente contigo. A conversar. A trocar aforismos e sorrisos cúmplices. A falar de livros e de música. A escorropichar jornalismos. A teclar as insondáveis ousadias dos projectos sociais (e pessoais). Enfim, a sentir que continuávamos do mesmo lado da barricada.
O pior, é que também comecei a preocupar-me acerca de ti, quase a desejar a responsabilidade de ter-te a cargo, de tomar conta de ti, cuidar-te, decidir o que te convinha, o que seria o teu bem ou o teu mal... E, principalmente, a ansiar que este nunca te acontecesse. O que é uma óbvia parvoíce, considerando que as superstições, incluindo as de elevado teor de suspeição, raramente se confirmam conforme os nossos desejos. Ou provavelmente outra forma proteccionista e paternalista que encapotadamente assume o receio da solidão, a adestra, a compensa do medo de não termos ninguém para brincar. Há até quem lhe chame solidariedade... amizade, paixão. Outros, mariquice!
Embora nenhuma ciência o justifique e subscreva, é um risco superior às nossas capacidades, admitir que a ternura modifica as condutas. Aceitá-lo, acatar essa possibilidade viciosa dos afectos, que simultaneamente nos torna adeptos e dependentes, costuma ser a dilecta consequência que nos impõe ritmos novos, pulsares inconstantes, estruturação de outras prioridades e motivações. Mas é inclusive o corte profundo com hábitos e maneiras de estar precedentes. Isto é, uma autêntica revolução nas nossas consciências, quotidiano e objectivos de vida. Para nos reconfortarmos, é usual identificar esse sentimento por amor, arrebatamento e atracção. Ou intimidade. Todavia, pessoalmente, não seria capaz de o admitir sem reconhecer a característica simplista de tal recurso – ou tais – que a definição acarreta. Porque essencialmente é um sentimento mais complexo e intrincado, como que assim mo dita...



Quando imaginamos que a vida emocional e afectiva se encontra estacionária, eis que o acaso nos prega outra partida – precisamente aquela que faltava, e jamais supusemos vir a acontecer-nos, do género totoloto que sai sempre e unicamente a outrem –, colocando-nos frente a frente, determinando e demonstrando as nossas comuns fragilidades como aos infantes da plebe, a quem o simples facto de terem nascido é já de si uma controversa provocação ao destino, quiçá a primeira das desgraças de entre as demais que a existência lhe reserva!... Ao pensarmos que mais nada de peculiarmente péssimo (ou de mal) nos poderia vir a surpreender, eis que o acaso nos volta a jogar um contra o outro, como se fôssemos suas marionetas, quais seres indiferenciados sem vontade própria, submissos e obedientes a uma ordem ancestral desconhecida, cuja útil obrigatoriedade em coisa nenhuma nos beneficia e não vai além do fazer-nos cumprir os desígnios estabelecidos pelo suserano e senhor das nossas vidas, quer nos caprichos superficiais como nos fundamentos. E ao caso, unicamente como seus intérpretes e actores!
Acreditar que assim seja, em absoluto, pode inclusive não ser argumento válido para justificar a nossa vontade, nem para subtraí-la, mas sim uma forma de nos conformarmos com aquilo que a vida nos dá e proporciona. Nem atitude de defesa quanto à nossa sanidade mental, ou minimamente empenhada e em prol de um futuro assaz expectante e continuamente imaginado. Utópico. Ideal. Contudo, estabelece uma urgência, uma imediatez, que nos convoca, estipulando novos graus de tolerância e, em termos explícitos, de sociabilidade. Outro grau de exigência na escolha das pessoas com quem nos damos, privamos, preferimos para conviver, e que tem muito a ver com uma espécie de consanguinidade da alma. Ou, até mesmo, com aquela determinada maneira de nos expressarmos, de nos vestirmos, de nos comportarmos, de falarmos e de nos envolvermos – ou tratarmos – com os demais, que se consubstancializa e traduz enquanto dialecto próprio de ser e estar. Estilo. Glamour.
Quando digo que há presenças que nos alteram os dias, obrigando-nos a reflectir acerca do nosso relacionamento com elas de uma forma mais contínua e premente, não estou a efectivar qualquer escala de positividade – ou negatividade – objectiva. Estou, isso sim, a reforçar o pressentimento de que há pessoas que, quer pela atracção e comunhão que exercem em nós, quer pelos sentimentos que em nós espoletam, estão superiormente destinadas a preencher, em termos quase absolutos e totais, a nossa capacidade de empatia, ou seja, de reconhecimento do Outro. Que ocupam o nosso segredo, a nossa capacidade de criar e usufruir do quarto que é de mais ninguém, aquele reduto privado a que negamos a entrada seja a quem for, do quadro que jamais alguém ousou pintar senão nós, ou sequer olhar como nós o olhamos e compreendemos, cuja existência todos desconhecem, excepto aquela pessoa que conquistou o direito de lá entrar, sempre que quer e sem bater à porta. Que tal se afigure bom ou mau, é indiferente, principalmente porque nos obstrui a lucidez, ao alcançar uma impetuosa imperiosidade tal e tamanha, que a urgência antes admitida apenas às nossas necessidades vitais, se translada, por assim dizer, para a presença dela e descodificação dos comos e porquês com que se apresenta.
Dito de outra forma. Logo que senti que voltava a gostar de estar contigo, não por aquilo que dizíamos ou faríamos, nem pela utilidade ocupacional da solidão, e tão pouco pela mais-valia que a tua presença acrescentava no que aos outros de mim pensariam, mas sim pelo conforto que o silêncio da tua presença, o simples saber que estavas comigo e não em qualquer outro lugar, me transmitia – talvez algo semelhante àquele reconhecido bem-estar pacificador que a noção de voltar a casa nos inspira, depois de uma longa, desconfortável e cansativa ausência, por exemplo –, bem como pela tranquilidade de estar com alguém para quem não precisava de justificar nada ou representar qualquer papel, senão o da minha própria espontaneidade, apercebi-me imediatamente que continuavas a ser para mim aquela que já houveras sido, e, provavelmente, sempre foras: a imprescindível. A insubstituível. Aquela com lugar marcado no nosso coração que ninguém mais pode ocupar – embora, surpreendentemente, sejamos incapazes de dar nome ou definição exacta ao sentimento que a ela nos liga!
É claro que preferíamos que fosse amor, sentimento típico e comum, que normalmente toda a gente entende saber o que é, muito para além das inúmeras nuances que o conformam, sistematizam e instituem... Mas que tipo de amor? E porquê só amor e não outra coisa qualquer?! Porque não preocupação desinteressada?... Ou amizade. Companheirismo. Compreensão. Prevenção egoísta. Medo simples de nos perdemos um do outro... Porque não?!...



Cometamos, então, um pequeno crime, um insignificante delito de lógica... Uma rudimentar anamnese. Proponho que retornemos ao tempo em que nos conhecemos, na Biblioteca Municipal, isso, a quando da Comunidade de Leitores! Quem poderia supor que nos voltaríamos a encontrar, no café, no jardim, na gare rodoviária, nas praças e ruas da cidade, no cinema documental, nos circuitos quotidianos? E, contudo, fizemo-lo... Nada havia entre nós, que o justificasse, além do mistério da diferença! Mal sabíamos o nome das cartas, a cor do baralho, as cambiantes ou matizes dos humores e motivos, com que nos iríamos jogar, e muito menos as regras do jogo a que nos propúnhamos. Estávamos em branco quanto a nós e, sobretudo, quanto aos nós que nos sustinham e ligavam, enleavam na trama do espanta espíritos que parara de tinir. Mas, por impossível que possa parecer, em vez de nos desenlearmos da enrascada em que nos metêramos, cada dia enlaçávamos mais e mais o relacionamento que iniciáramos.
Podia ser estranha a forma como nos estranhávamos no acelerado do quotidiano comum; todavia, não o era – e sabíamo-lo. Tendia a assemelhar-se à tentativa de fugir para a frente, provavelmente renunciando ao misterioso medo que nos causa a sensação de estarmos condenados um ao outro. De não sermos capazes de aceitar o nosso destino, simplesmente, pelo bom que ele tinha para nos dar e mostrar, desacreditando nas facilidades oferecidas, e subscrevendo o pio aforismo popular que induz as gentes rústicas a não sentir prazer em desfrutar daquilo que abunda, é de borla, e ninguém forjou, como a natureza, a água cristalina dos regatos, as matas silvestres, as paisagens coloridas da Primavera, o chilrear dos pássaros nos trigais e outeiros, o espraiar das águas sobre os areais dourados, as inúmeras cambiantes que o sol oferece entre o nascer e o ocaso, a serenidade dos pequenos répteis sobre o penhasco escondido, o ar puro dos bosques e serranias, o grito ondulante do melro no pomar, e que evidencia as origens miserabilistas e medievais dum povo acomodado na irresponsabilidade política, sumariamente reconhecido no quando a esmola é grande o pobre desconfia. Porque, afinal, mesmo quando nos atirávamos para o convívio dos desconhecidos, fazíamo-lo na tentativa de angariar experiência que nos cimentasse, fortificasse, esclarecesse e apurasse, destilando o soro essencial (e eficaz) para alimentar a relação encetada. Angariávamos capital emocional que nos solidificasse a quota que ambos detínhamos na empresa comum: a liberdade de nos sentirmos a viver um em função do outro, e irremediavelmente. Prò que desse e viesse. E sem esperança absoluta nem recusa totais... Pese, embora, a relatividade das circunstâncias!
É uma arte exímia essa, a de nos socorrermos mutuamente desesperançados. Sobretudo, por nunca termos buscado um no outro a (re)solução para os nossos problemas e limites, mas estarmos sempre dispostos a contar connosco, eu contigo e tu comigo, em facilitar-nos os compassos de espera que nos permitissem o novo salto, a velocidade e balanço suficientes para atingir a altura necessária, pronta, insuspeita, com que ultrapassar as caprichosas peripécias do ser e estar de cada um.




Naquele tempo, a vida não me compreendia minimamente, e eu pagava-lhe na mesma moeda. De pleno direito e em pé de igualdade, tratava-a tal e qual ela me recebera: com despropósito, sem um pingo de vergonha e menos de consideração. Até porque, se ambos existíamos, por que havia de ser eu o obrigado a compreendê-la para nos facilitarmos a convivência, e não ela também a procurar uma plataforma de entendimento, que era muito mais velha e experimentada, han?!?... Aliás, pensava eu, na época, que a reciprocidade era uma lei fundamental à sustentabilidade, e não um modelo de diferenciação instigador de arritmias e assimetrismos; o que ainda hoje professo, por sinal, em resultado do que constantemente me debato com esse desequilíbrio estrutural, que é o de não saber discernir entre uma lei da vida e uma estratégia dela. É que numa lei as obrigações são mútuas, na generalidade e universais, enquanto na estratégia, é somente ao outro que cabe toda a obrigatoriedade (objectiva e operacional). E se na primeira a existência, a vida, é um réu igual a nós, na segunda, cada estratega pode também ser juiz, medidor na realização de objectivos e avaliador de resultados, aferindo da sua eficácia, em termos práticos e concretos. Portanto, acontecia sentir-me no direito de modificar a vida conforme, tanto e quanto, ela intentava modificar-me a mim; no que, por ela me torcer, eu a distorcia!
Apesar de tal conduta acarretar invariavelmente elevado número de dissabores... Desencontros. Atropelos. Injustiçamentos. Multas. Manifestas e desvirtuosas idiossincrasias. Acentuadas desagregações psicológicas. Idiotismos. Pois desconhecia que, se se aposta, ou nos apostamos, acertar no pleno, exactamente quando nem sequer estamos habituados a jogar, pode ter muito de sorte inicial, mas não é, nunca será humano. E eu queria a grande por cada vez que a tômbola girava... A taluda, logo que te via!
Tu foste a esperada na sorte, confesso. Era intransigentemente o acaso a ditar-me põe-te a pau, que desta é que é. Pelo menos, foi assim que o interpretei... na minha santa ingenuidade. Impreparado para o dia-a-dia, para o consequente nascer, crescer, criar e morrer da vida, era também incapaz de admitir que não estava preparado para os outros. Preferia sentenciar que o erro de convívio, ou nas negociações semânticas, lhes pertencia exclusivamente. Que a incapacidade era unicamente deles. Ou que o defeito (o ruído) de comunicação estava, sem a mínima dúvida e incondicionalmente, nas causas que lhe eram próprias, personalidades, características temperamentais e motivação!
Ora, essa mágica exalação narcisina, qual propensão neurótica, com que a imaturidade nos faz acreditar numa inocência imaculada, cartão de crédito ilimitado no banco da esperança, por tão falsa e absurda, não me deixava enxergar quão importante me eras. Nem como cada uma das minhas células te pertencia sem qualquer direito de voto ou opção. Porque ser é principalmente pertencer; e só o somos verdadeiramente, quando caminhamos libertos e sem receios no cumprimento – e ao comprimento – da nossa estrada, na execução das quantas passadas que rasgam a nossa vereda, e a instituem como caminho diariamente conseguido.
Aqui não há deus nem mandamentos. Há simplesmente o sortilégio de reconhecer o valor da ternura e carinho. E se para os contrair tivermos que recorrer aos anteriores, então que o façamos sem remorsos, limites, condicionalismos ou constrangimentos. Pois nunca é tarde para partir à desfilada no dorso da aventura, e nenhuma há de maior do que a felicidade de quem amamos. É esse o novo mundo que podemos dar aos mundos, por quanto perto disto Os Descobrimentos mais não foram que uma brincadeira infantil!
Porque será que todas as pessoas que nos aconteceram se voltam a repetir?... Porque nos conjugamos, a maioria das vezes, no imperfeito e inacabado pretérito da primeira ocasião. Foi Sartre quem o caracterizou na hipérbole de Os Mortos Sem Sepultura, mas nem precisava que aí o tivesse feito, para que agora o reconhecêssemos como verosímil. A sensação de que a humanidade é algo ainda por acabar, sujeito a contínuos aperfeiçoamentos, miscigenações, cruzamentos de DNA’s, é-nos mais ancestral que a ideia da existência de sagrados e divinos. Está para lá de todos os lás que imaginar possamos.
Ninguém pode apagar o seu próprio percurso sem caminhar de marcha-atrás. E mesmo os que o fazem pegada após pegada, aproximar-se-ão sempre como quem está de abalada. Inconscientemente. Com inoportunidade e sem objectivo definido e convicto. Sem querer, ou porque o não podem fazer de diferente forma, considerando que não haverá, em seu perfeito juízo, quem opte por agir dificilmente quando pode escolher a simplicidade. Pelo que se tornarão artigos à margem (da vida). Alguém que nunca dará sentido e determinação aos nomes que liga, sustenta e indica... quase gralhas de uma mancha falhada de significado na teia semântica dos grafismos, acidentes de navegação duma espécie que raramente segurou o leme de seus destinos, a quem o acaso e a necessidade decretaram os rumos a seguir.



Presentemente reconheço que posso escrever o teu nome com o sangue da minha voz, sem blasfemar nem invocar a intimidade do amor em vão. Porque actualmente também sei quão doloroso pode ser o renegar-te. Quanto significa a tentativa de esquecer-te, posto que apagar-te de mim é apagar-me contigo. E sobejamente foi demonstrado já, de régua, compasso e esquadro, que na trigonometria do ser só se não dá quem se não tem...
Se o tiveres ao alcance, escuta Chopin no recato de me leres. Há pormenores, apontamentos melódicos, ressonâncias, ecos, em cada nota que se dilui e extingue, que pretendem dizer tudo aquilo quanto o calar não conseguiu. Inclusive o calar gritado, que é essa forma distinta de atirarmos as palavras que não queremos para fora de nós, as que nos sufocam e inauditas, ou simplesmente deturpadas se aproveitam das vias de comunicação desimpedidas e preferem pecar eclodindo na superficialidade física dos sons. Talvez nem valha a pena, mas quem sabe o que perdeu sem o ter experimentado? Do outro lado da esquina está o resto de nós que não vimos. É ela o Bojador que nos faltou dobrar, torcer, dar ao jeito de preferir naufragar a não continuar à tona e uma liberdade interior por liquefazer. Porque quando a criança é abandonada um dia, irá senti-lo para toda a vida. Se nos propomos a fazer algo que não fazemos, a escrever uma carta que não enviamos, a ter um sentimento que não dizemos, estaremos indubitavelmente a influenciar o restante tempo da nossa existência com um momento incumprido.
Viver é uma sentença que nos impusemos executar o mais exemplarmente possível. Nem que para isso, para lavrar essa condenação, nos tivéssemos simultaneamente outorgado juízes e carrascos, legisladores e meirinhos. Contudo, beleguins de nós mesmos, ao notarmos como seria demasiado onerosa e árdua a tarefa, resolvemos abdicar da burocracia interior a que ficáramos consequentemente obrigados, mandatando para o efeito o tempo e a idade, num horário que o nosso relógio biológico se indispôs a concretizar e medir. A satisfazer. Foi então que nos adiámos para melhores dias, esquecendo que quem sobretudo os determina é uma primavera que não pertence ao calendário das estações, e que nos está adstrita desde o minuto em que fomos gerados, estipulando a duração e qualidade de cada um dos nossos genes e células, garantias e salvo-condutos, limites e propensões. Daí que despertar seja uma consequência dolorosa mas imediata, logo que o biomaquinismo de precisão toca a rebate. Quer queiramos, quer não. Porque então, nesse exacto momento, fomos obrigados a reconhecer que não há meridiano que nos propicie consolo, reduto que nos acolha e acalente, quando vemos o que evitáramos ver, e admitimos que nada daquilo que nos aconteceu teria acontecido, se tivéssemos feito o que não fizemos. No meu caso particular, se te tivesse enviado uma carta que te escrevi mas não meti no marco do correio, esquecendo-a com selo e endereçada, apenas falha de pernas que a levassem onde ela por si só não podia ir!...
O sino que soou logo que te vi, dita-me ainda o alerta de assentar raça. É o instinto a jurar-me fidelidade. É cada uma das minhas bactérias a assumir a postura de comando, ou de felino em pose e manobras de caça. Mas é também o remanso reconhecido de quem regressa finalmente ao seu quintal de ilusão. Ao seu jardim de sentir-se a salvo. Àquele local onde tudo quanto nos pode fazer mal ou envenenar possui a doçura, delicadeza, textura, maciez, arrebatamento e aroma das mais sublimes flores e especiarias... Tudo coisas belas e magníficas que nos matam por bem (querer).
Nesse claustro perdido em que deambula e medita o eremita que nos arruma as preces, costumam ainda florescer ervas das quais desconhecemos a utilidade e fragrância. Foi o acaso ou a larada de qualquer pintarroxo que aí as plantou? Teremos portanto o direito de as mondar? Seremos assim tão perfeitos, puros e suficientes, que nos assista a vocação missionária de jardinar sem elas? Mas, não obstante, insistimos em regular metódica e cientificamente as estações aos nossos afectos. Estabelecer o pulsar dos nossos climas. Determinar o ritmo, frequência e quantidade de cada rega. E esquecemos que não tem a mínima importância saber o nome e estirpe das plantas a que nos seguramos quando caímos de borco! É por isso que penso que não devemos apagar as sardas que nos eclodem no rosto e na pele, pois que muito bem podem elas ser o sinal da nossa outra pele que está por baixo, aquele que nos forra o íntimo, e que interiormente nos reveste e protege... No que se iguala a mais uma das razões por que não consigo (nem permito) esquecer-te, arrancar-te do meu coração adepto. Porque todos somos de menos para fazer prevalecer a dignidade de cada um, e sabemos que apenas conseguiremos a originalidade desejada, quando tivermos etiquetado todos os porquês nas pessoas que os suscitaram.



Sei do pouco, enfim, de quanto me acode em excesso, numa narrativa que travará as rotas do indizível por desmentir. Mas não desconheço que dele, e dela, o carinho é tão-só a ínfima parte. Um tão tudo de tampouco... Um delével toque, um sopro, um murmúrio sobre a pálpebra cerrada no silêncio de quem adormece sonhando que sonha, e a sonhar se translada para o coração de quem ama.
Como não desconheço, ou reconheço igualmente, que não voltarei a esquecer que há brisas que correm noutras correntes, insondáveis talvez mas assaz escrupulosas, ímpias, capazes de se insurgirem no quotidiano, determinando-o, influenciando-o muito para além do que é lógico, compreensível e normal. Tal e qual assim me aconteceu, que por não ter metido uma carta tua, passei um sábado sem tomar banho, fedendo, sujo e sem beber café, a cabeça a estoirar e o coração num pântano, irritado, sorumbático, agoniado, neurótico, a servir de sanita às malquistas aves que do céu me escarnecem, e não pude escrever uma linha sequer acerca da catástrofe que me sucedeu, além de, ó desafortuna dos mal nascituros e desgraçados, a minha equipa predilecta sofreu a pior das derrotas no campeonato, precisamente com a sua rival no bairro metropolitano, a única cujos adeptos sabem quem somos porta a porta, e nos vão perguntar com sorrisinho matreiro a meia haste «então, gostou do joguinho, gostou?...» Esses; sim, esses!
E como se não bastasse a afronta, eis o mais reles dos castigos mas também a pena supremamente dolorosa para qualquer prevaricador: o medo. O receio de ser descoberto. O stress da ameaça. O ficar recluso em casa e não sair nunca, ou, fazendo-o, apenas furtivamente, pelas artérias menos frequentadas, colado às paredes e o coração batucando de meter dó, o vivo pressentimento de que a todo o momento se pode ser vítima e alvo de emboscada, ataque selvagem e à socapa, investida vingativa dos meus companheiros de clube, fãs e sofredores da mesma claque ou bancada, que foram punidos, humilhados, derrotados, achincalhados, vilipendiados comigo e por uma falta que somente eu cometera: o em tempos não te ter enviado uma carta que te escrevera. Sim; porque neste mundo tudo está relacionado com tudo. E a minha culpa com ele, numa rede infinita de nós e elos, onde caem as maiores maravilhas como as piores tragédias, bastando para as provocar fazermos uma coisa que não devíamos ter feito ou não fazer outra que devíamos ter feito, assim como me sucedeu, e muito bem-feita foi, que é para abrir os olhos e jamais cometer a asneira que cometi, em sonegar-te uma missiva, sequestrando-a inadmissivelmente, que é como quem diz cometer um execrável e vil aborto, pois que ao furtar a carta ao seu legítimo destinatário, eu não só evitei que ele conhecesse o que era dele e devia saber, mas inclusive que duas vozes se encontrassem (a minha e a tua) e delas nascesse a criança, o significado do futuro, a derradeira mensagem de carinho no ventre da esperança de quem muito bem se quer.
Por conseguinte, em nome desse sentimento conto-te isto mas peço-te encarecidamente que o não divulgues, que não digas a ninguém que o meu clube perdeu por causa de mim, por favor não digas, que não tenho corpo – sim, sou fraco e insignificante, e aflige-me a dor... – para aguentar tudo quanto eles (os aficionados) dizem que querem fazer ao árbitro, aos fiscais de linha, aos jogadores de um e outro lados, à ministra das finanças, ao treinador e direcção do clube, bem como à filha da vizinha, que é boa como o milho, mas não sei como é que a claque a conheceu, pois ela nunca vai ao futebol! Por favor não digas, não digas que eu sucumbiria certamente, morria sem a menor dúvida do que fora, e não iria parar ao céu, pois não, ah isso não, que quem morre de um acto deste calibre não consta que tenha sido escolhido para lá entrar.

Não digas que eu prometo, sim prometo, nunca mais reter qualquer carta tua e, vê bem, se o fizeres e eu falecer, então é que jamais terás cartas minhas... Compreendes-me, não compreendes? Também eu, que aprendi a lição: calar aquilo que queremos dizer pode transformar-nos a vida num inferno. E que é para não esquecer, a fim de que outros sábados semelhantes se não repitam! 

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