A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

sábado, março 07, 2015

O RETORNO DO VENCIDO




O  RETORNO  DO

  VENCIDO



Por JOAQUIM CASTANHO


Afinal, somos uma silhueta longínqua, que esforçadamente tentamos distinguir no horizonte...
Resumimo-nos no olhar, no gesto, na fala. Em cada três palavras, uma, a de maior expoente, é falsa ou inconsciente. Temos o privilégio da ingenuidade e sabemos a plástica que nos corre nas artérias sinuosas colorindo o anatómico espectro. Possuímo-nos mais quando pertencemos integralmente, em entrega total e absoluta, a alguém, mesmo que continuamente apostemos em mudar, por sabermos que o/a nos não merece (definitivamente). Gostamos de nos distrair com bons oradores, com recordistas, com feitos humanitários e progressistas, com arrebatadoras obras de arte, desde a pintura à música, passando pelas restantes outras, mas o que sincera e profundamente adoramos é o silêncio – a magia do silêncio...
Aqui já se acabaram todos os anseios. Liberdade? Sabedoria? Imaginação? Poder? Nada significam! Como a pequena bola que se despenhou do alto da montanha nevada e alcançou o vale, assim a nossa geração reteve os principais valores humanos... Fizemos o que fizemos – rebolar, nada além. E bastou. 
O poder físico está connosco; temos a juventude e a coragem de estarmos presentes (o que não é pouco!) e procuramo-nos atrapalhados, nos bolsos, como quem tem o cigarro ao canto da boca, uma enorme vontade de fumar, e busca incansavelmente os fósforos. Somos os eternos desempregados – os indiferenciados, os sem especialidade, os da reforma suspensa e adiada, como nos catalogaram à saída do ensino obrigatório – filando o estatuto que os da outra Europa nos prometem ironicamente. Temos o bem-estar do cão de Kafka... E tudo nos vem do céu como maná: Através do hipermercado!...
Aceitamos conformados. Aceitamos e adivinhamos o sorriso protetor das barbas brancas, onde se divisa o rasgo de uns dentes postiços, alinhados e amarelecidos pelo tabaco. A nossa segurança é peregrina; umas vezes defende-nos, outras, as mais e brutais, ataca-nos... Enfim, temos por potencial uma única certeza: cada um, em sua silhueta impressionista, é o fantasma privilegiado do outro: amamo-nos.
Por consequência, o principal papel que nos permitimos, é preencher a solidão silenciosa com que cada se liberta do tempo e do espaço. Imitamo-nos mutuamente e nada inventamos: no máximo, limitamo-nos a descobrirmo-nos. O sonho é o único anel da corrente do real onde nos consentimos marujar, em naus tão frágeis, tão cascas de noz (ou cascas de nós!...) como qualquer fotografia tipo passe. Jamais de corpo inteiro e em família! Porque o sexo é-nos essencialmente psíquico do género físico, estranhamente imperioso, onde, de quando em quando o desejo desperta por mor do desconhecido. Contudo, esta derrota mais não é que a raiz quadrada das outras a que coletivamente estamos, consciente ou inconscientemente, ligados. É o refogado resultante de 800 anos de História, que, indubitavelmente, não chegam para nos destruir o orgulho! 
Dêem-nos um golpe palaciano, dez tostões e uma mulher que cheire a tojo e giesta, que o fado se cumprirá. Mais: não se esqueçam da canoa... em que servimos a Europa. É que sentimos sempre um desejo mui dolente de voltar. O que nos torna bárbaros, e a que chamamos saudade. E quem vai nela?
O Sítio é um casario pegado ao rés da estrada, que o liga a Casal Parado, e que este ata ao resto do mundo. São casinhas pequenas, baixotas e atarracadas, brancas elas e todas, com um chapéu vermelhão de telha mourisca, paredes com metro e vinte de largura rasgadas por duas janelas e uma porta, em madeira de castanheiro pintada com o pôr-do-sol. Por dentro a tarimba, a pilheira, o tropeço e a banca que serve de mesa para tudo e já fincou as patas no ladrilho, marcando lugar, fazendo-lhe quatro furos redondos, e donde não mexe sem que a icem. Nós estivemos lá!



Aos homens, se andam por cima de telhados, têm cautelas e gestos de gato. Elsa, à viva força de conviver com os rapazes, tornou-se teatralmente num deles. Quando nos encontrámos pela primeira vez deixou-nos confusos. Era uma tarde de início de Verão e não tínhamos onde ir festejar o S. João. Com a sua peculiar sensatez informou-nos de que havia várias romarias, cada uma em sua determinada área de Casal Parado, mas que não valia a pena ir a elas, porque não passavam de desautenticidades macaqueadoras dos portismos lisboetas, ou meras encenações de mau gosto. Disse-nos que o interessante era muito mais interior e profundo do que davam a conhecer aquelas festas, e que, como quem arruína o efeito dos sucedâneos apresentando o sabor das especiarias, o puro povo não nos vem à realidade de mão beijada. Que havia que procurá-lo no seu meio e entendê-lo de acordo com as circunstâncias desse, prescindindo dos artefactos da urbanização e esquecendo-nos de nós próprios. Achámos unanimemente que sim, e que sim senhora!, mas ficava na mesma por resolver o nosso problema: aonde ir?...
Elsa sempre quisera aquela maneira de estar à margem da classe média. Gosta de jogar ao truco, à malha e de comer migas de pão com toucinho e chouriço frito logo pela manhã. Usa a saia até abaixo do joelho, daquele xadrez de tons azuis, verdes e pretos, e um lenço pelas costas, sobre a camisa de folhos, quase sempre branca do imaculado corar, como se toda a vida estivesse integrada num rancho folclórico. Anima-se demasiado quando suspeita ter descoberto uma história nova sobre os vizinhos, e nunca para de se mexer enquanto fala, dando a impressão que está animada por ligação elétrica. É roliça, olhos castanhos e cabelos compridos, ondulados, da cor da casca velha dos sobreiros, caídos e partidos por um risco ao meio. Tem uma pinta escura, minúscula, ao canto esquerdo da boca, no lábio superior. E é baixinha, assim com a cabeça beirinha dos ombros de homem. Quer ser a vida toda, e é quem toma a dianteira na maioria das iniciativas; quando assim não sucede, diga-se, contesta-as. Faz o que quer e somente porque o quer fazer. Quando lhe dizem o que deve ser feito, ou como deve pensar, opta pelo contrário do que ouve e, se a conversa se alarga dos eixos, começa a cantar qualquer modinha brejeira ou infantil, dando-nos a entender que é desnecessária a persistência em sermos corretivos e paternalistas. Foi ela quem nos conduziu ao Sítio, terra de sua mãe e avós paternos, a fim de aí assistirmos ao S. João.
Quando chegámos havia uma hora, mais ou menos, que o vinho corria e a sardinha derretia na brasa, pingava no pão. Em roda, sentadas em cadeiras de bunho e o xaile sobre os joelhos, duas dúzias de velhotas, entre sorrisos nostálgicos e o lento mastigar, ruminante, arriscavam monótona conversação, sobre trivialidades a que não deviam pressa. Encostado ao poial, entre os homens que, de copo na mão e algazarra, discutiam virados uns para os outros, e as idosas, um tocador de concertina, o Santareno, como viemos depois a saber chamar-se, executava algumas modas alegóricas à situação, sem se prender com a vivacidade da fogueira nem o vaivém das mulheres assando as sardinhas, ou deitando vinho, e que fazendo saladas ainda lhes sobrava tempo para dançarem umas com as outras, na galhofa, a saltarem o fogo, gargalhando libertas, ousadas e sensuais, no arregaçar das saias sob o pretexto das labaredas.
O carro de aluguer em que nos deslocáramos voltou para Casal Parado. Elsa tinha-nos prevenido de que havia camionetas logo pela manhã, e por consequência não providenciámos a que o “taxi” nos viesse recolher. Quando este fez a inversão de marcha no largo fronteiro à casa da ti’ Rosa Ratinha, que, por estar mais afastada da estrada e situar-se a meio do Sítio, desempenhava as funções de Rossio, não raros rostos se voltaram curiosos, mas num repente, todos eles retomaram o que estavam fazendo sem cuspir mais pevide. A cicerone apresentou-nos aos que de momento nos deram importância para tanto, e que foram principalmente as velhotas. Os copos e as sardinhas apareceram nas nossas mãos quase por artes mágicas, e a ti’ Rosa afiançou-nos que quem fosse com a Elsa era bem-tido-e-chegado. O que provavelmente significaria uma outra forma de dizer “bem-vindos”.
A principal mensagem das mensagens dum poema, qualquer ele, e das obras literárias em geral, é que em cada um há milhões e milhões de mensagens para além daquelas que nele conseguimos captar. O quadro inicial deixou-nos boquiabertos. Queríamos absorver tudo de uma só vez, e ficámos ébrios, não da bebida, mas das gentes, do calor, do luar, das centenas de pontos brilhantes que nos observavam lá do alto da sua infinititude, e do suor com cheiro a terra regada. Ledas, as crianças, perdiam-se por entre as pernas dos adultos que lhes serviam de obstáculos móveis para o seu agarra-agarra ou apanhada. Pouco a pouco, a nossa individualidade fundia-se com a dos autóctones, e difícil se tornaria saber onde começava a nossa diferença. O anacronismo venceu-nos. De outra época, moralmente bárbaros, dão ao trabalho louros de dever e à família foros de intocável. Ser dos seus é estar partilhado mas protegido. Sanidade?! O que os preocupa não tem que ver com formas perfeitas; bem-estar e sobrevivência são o vértice das suas condutas. Confundem inteligência com esperteza e não se incomodam com isso! Capazes de cuidar melhor de um canteiro de espinafres que do seu corpo, fazem vida sem horários nem regras estabilizadoras do físico, como seriam o comer a horas certas com variedade e qualidade, repousar convenientemente, não exagerar do vinho nem no tabaco, e assim por diante, mas sofrem mais por ver a terra ressequida ao sabor do estio, do que com as dores e reumáticos que os fisgam, e a biografia clínica sublinha.



Entrementes ti’ Rosa dava despacho ao aguçado anseio por novidades (ai continente!) de algumas comadres mais arredias; o companheiro, João Liberto, nato contador de histórias e casos, querendo dar-nos um ar da sua graça, desfiou para deleite de quem o escutava uma multidão de situações, umas parodiando o ridículo, outras heroicas e humanitárias, e que se podiam classificar de parcelas da sua vida. Da sua lida. Do cruzar-se com o seu semelhante (e o destino).
Engenhoso no falar, sabia ir aos pontos mais ínfimos, às peculiaridades significativas, sem descurar no cuidado para não levantar a lebre antes do fuzil apontado, e assim criar em nós a emoção por ele considerada certa e de acordo com o sucedido. De chapéu de feltro, com abas largas e um tanto descaídas e desbotadas, camisola de flanela aos quadrados de mangas arregaçadas até ao meio dos braços tostados, calças de ganga azul-escura feitas por medida, obra da sua patroa, de bolsos a direito e com vira de botão, para abotoar o sustento da sua ama, que era o apodo que ele dava à ti’ Rosa, dava e dá!, botas de cabedal das que atam à perna com presilha e têm sola de pneu, pousando uma mão sobre a outra, direita e esquerda à altura do peito, no pau de marmeleiro com moca na ponta, fazia com que viajássemos por 1936, tempo de fome e espanholas pedindo abrigo e trabalho nos montes e casais, ou pela década de 40, onde a GNR, a guerra e o medo, ousavam seu aparecimento funesto ao córtex, mesmo dos mais afoitos.
Mas o que de superiormente cativante nos narrou, foi a infância de Elsa...
«Ah, conho! Só visto; só visto!... Pra saberem comu posso dezêr estas coisas todas, basta o fêto de ter andado com ela ò colo – às calhandras, melhor dezendo. Puxava-me os cabelos por baxo do chapéu, a danadinha! A barba, qu’essa sempre a tive assim com’agora!, nem muito grande, nem muito pequena, serviu-lhe de fronha ôspois de cansada de tanta juderia, e na minha merenda nunca faltou conduto e uma ourela em que só ela tinha orde de tocar. Fez-me de fel e vinagre, mas... Que podia ê fazer?! Quando me jungia ao peito era tudo outra cor!...»
Nós, ao pé dele, pequenos, menores ainda porque maravilhados, em atitude quase religiosa, deixámos, sem uma única vez sequer intervir, que ele, parando de quando em quando, numa esticadela de braço para apanhar o copo de nossas mãos solícitas, a bebericar um gole e molhar a língua, desse vazão ao reconstruir dum mundo não doutro conhecido, em ternura e tempo, que é brando se mesmo com fome de sobejo a primeira não faltar. 
«Nãm sê porqu’é ca gente gostava tanto dela... S’o dar-se c’os da mesma laia, num era c’o ela! Só o Manel, o filho da Lárinda, lá a do canto, a c’anda a trabalhar a dias na cidade, é que conseguiu moina por perto... ‘Té parece qu’ind’antes d’abalar houve namorisco na moita... Mas isso nãm interessa! Num vem ao caso! Naquele tempo vevia-se más mal c’agora se veve; e s’um casal s’atinha só c’uma jorna, ripava fome de rabo. Elsa quando deixou de precisar dos cuidados da mãe, veio prà casa d’avó, e foi cá que tirou os premêros estudos – a premária, quer-se dezêr. Eu e a minha patroa semos assim c’avó dela!, vai daí habituamonoses ao regabofe, que s’ela ia à da mãei ficávamos descoroçoados. Encareceu-nos bastante, a galderota! P’lo Verão, entrementes o merendar e a ceia, ind’hoje o fiz, costumava regar os mimos do quintalejo; indabenão ela ia comigo, e tamêin quis uma horta. E têve-a!... Aos cinco anos a minha prenda pra ela foi um sacho, e desde essa altura, cando eu ia prà’li, se era semear, era semear, se era regar, era regar, ela perantava-se a ver-me, a bispar com’eu fazia, e lá no talhão do fundo botava de fazer talqualmente. Tinha aí dum tudo; em menos, é claro! Popinos, tomates, fêjões, côves, alhos, batatas – tudo! Devedia aquilo com’achava, e ôspois regava com brio, c’as novidades é o que querem: água no rego e sol na ponta. Olhem qu’era más fácil um mimo morrer d’água a mais, cà sede!»



A elementar atitude do sentimento de inferioridade é o orgulho. O orgulho da raça, o orgulho da classe, o orgulho da família, o orgulho individual. Mas João Liberto não sabe o que é o orgulho. Ele adora Elsa e di-lo. E quer que os demais dela gostem também. No seu íntimo raia apenas carinho e devoção; basta-o saber que ela existe (e está bem) para que se sinta feliz. Extasia-o. Envolve-o. Transporta-o ao palácio da ventura, que ele nem desconfia do que é (ou se e onde fica). Vive acomodado à sombra do afeto que de si transborda em glaucos gorgolhões de esperança contagiantes. João Liberto! João Liberto!! E soubéramos nós que a felicidade depende de tão pouco!...
«É com rezão que digo qu’inda aqui nãm passô ôtra com’ela. Noses, cá no Sítio, já criámos muitos! O Tonho, o filho do Capacho, qu’é alêjado e sapatêro. A Ana, qu’essa teve ôtra sina: foi pra Vale de Burros, lá pràs boates d’alterno... Ò como diabo se chama isso! E a Alzira, qu’inda chegou a prefessôra!... Gandaia da mesma fornada! – Eh lá d’ajudas! com ela eu, qu’eles só arredados. Há uns anos, antes do 25 d’Abril, veio por estas bandas o Marcelo Catiano. E sabem quem lhe foi dar o ramalhete do passar-bem? Foi aquele fedelho c’ali vêem! E não é que queria botar discurso?! Inda começou a dezêr “dô-lhe estas flores regadas a suor, qu’é pra s’alembrar da gente...”, mas à prefessôra nãm lhe conviu e tapou-lhe a boca – que foi o c’os dotôres sempre fezeram, quando a modos são doutras cores... – Se dezia por’i...»
Ora, se do imaginário mundo do homem nascem as mais maravilhosas aventuras, também das maravilhosas aventuras da realidade podem nascer as mais surpreendentes e fantásticas emoções e imaginações. João Liberto dá, como todo o bom cozinheiro que não consegue fazer ementas por receita decorada, a Elsa o papel de defender os seus (dele) ideais como se dela fossem. Barra-a com a sua utopia; vê-a pelos óculos da sua verdade.
«Gosta de ver toda a famila bem. Nãm é com’a prefessôra que lhe pôs a mão na boca, não!... Qu’essa de gente e coração atém-se pelo fêtio!... Labutar, aprender e gozar sem estragar o arranjo de ninguém, são as manhas d’Elsa... Que nãm tem doutras! Boa hora é sempre aquela em que pode ajudar algum dos seus. Com vinagre num s’apanham moscas. Mais a mais, prà gente s’unir tem que ser assim. Somos muitos e diorrinhos; semos povo. E nãm podemos andar às desavenças... Senão, lá se nos vai a jorna e o sangue. E a vergonha da cara. Ela sabe o quanto nós sofremos; sabe, sabe. De sol a sol, pouca água e menos pão – foi o fado. E sem campaniça! Uma sardinha pra três, quando era, ‘tá de ver!, e se a fuça se fringia ao rancho, calhando o patrão passar havia marosca pla certa, que chegav’acabar em prisão, às vezes, e por dá cá aquela palha. Qu’ela sabe, sabe. Isso tudo... Sabe sim. À papelada pràs reformas, aqui da camarilha, foi ela c’as tratou. Sem desinfrença! ‘Tá bem qu’é pouco; mas menos é nada. Todos aqui quando precisam dalguma coisa por nãm terem estudos, é com ela que vão ter. Nunca se negou!! É porque sabe!... Porque sabe... E é o nós sentirmos qu’ela sabe! Pois. É um saber que vem de dentro da gente...»



A arma mais mortífera tem em si a ofensa das feridas sofridas. João Liberto sofreu a bom sofrer, e podia estar revoltado; foi ofendido na sua dignidade, humilhado no seu direito a ter uma vida de homem autêntico, e roubado no seu esforço, no seu trabalho. Na sua energia. No entanto, estava ofendido mas não revoltado. Porque a revolta é uma condescendência, João Liberto nunca esteve, não está, nem jamais estará revoltado; quando muito, está decidido.
«Hoje, c’apanhámos o c’apanhámos, nunca mais deixaremos qu’isto volte pra trás. Temos fala. Temos fala e uma responsablidade; acabou-se o dezêr-nos o que podemos dezêr, e decedir o que é o nosso bem. Temos fala, queremos falar; temos filhos, queremos decedir. S’os lá do pelouro acham que vamos continuar a tremer aos seus arregougos, estão é enganados. Muito enganados, ó larilas vos digo eu! Liberto nãm foss’eu!... Sai-lhes o pombinho mocho. Julgam que nãm temos forças, qu’estamos capados prà política?... Mas nãm no pensem. Nãm no pensem! Esperamos, vemos e auguentamos, ‘té cum dia!... Entrementes estamos a medir, a arrazoar dos desmazelos e desmandos, e a estagiar no nosso lugar, fazido com as ajudas de Elsa e demais pessoas como ela.»
Foi interrompido. Era a nomeada.
Nova missão se lhe depararia. Nota-se o que é de notar porque ao acaso é associada a intenção. Ou ela é reforçada pelo acaso, conforme este o proporciona. Nós, um nada, uma bolha de gás no líquido e transparente universo popular, impotentes ao meio, éramos o alibi do espanto.
«Ti’ João! Ti’ João! Chegou a nossa hora. Vamos!!» Sim, tinham que ir... Segundo a imperiosidade da nossa cicerone, tinham que ir!...
Acabado o relato, por interferência da principal personagem, assistimos ao quadro não espontâneo, mas único por natureza, nessa noite. Nele, exceto nós, todos colaboraram, cantando. Elsa, mais cor e sensualidade do que nunca, interpretou as partes que lhe estavam destinadas. A cena representava a folga do ganhão, e ela fazia de sua namorada, empoleirada a uma das janelas, apoiada nos cotovelos ao friso, em casa da ti’ Rosa Ratinha. O ganhão, por baixo da janela, era o João Liberto. Como ganhão era um contratado rural que, estando toda a semana no monte, herdade, casal, onde fazia de um tudo, desde o regar, ceifar, lavrar, semear, desmatar, podar, debulhar, caiação e vindima, até aos mandados e caprichos das patroas, somente ia ao povoado ou aldeia numa tarde, de quinze em quinze dias, comummente numa tarde de domingo, para recolher roupa lavada, algum conduto como mimo de farnel e falar com a sua combinada. Tinha por salário uma maquia inferior à dos jornaleiros, mas do que resultava benefício por vias de comer e de dormir às expensas do patrão. O coro estava dividido entre homens e mulheres, vozes femininas ou masculinas, e não por timbres ou tonalidades.
Cantou-se então.

                 A  FOLGA  DO  GANHÃO

Os homens em coro:
                 Hei de te medir a alma
                 Deia bem ou mal medida
                 Pois gela quem acalma
                 E cede com medo à vida

Ao que Elsa respondia (bisando):
                 Inda mal nos conhecemos
                 Já o sol se está a pôr

Homens:
                 Lide eu só de domar
                 Áleas de milhos meados
                 Que mesmo assim o semear
                 Me tomará braços suados

E outra vez Elsa, em bisado:
                 Inda mal nos conhecemos
                 Já o sol se está a pôr

Novamente os homens, mas desta feita repetindo os dois últimos versos:
                 No doce e no alimento
                 No mel lameiro e eira
                 Ilumina e dai-me alento
                 Faz-te a lei primeira

Ao que Elsa, reforçando o bis:
                 Inda mal nos conhecemos
                 Já o sol se está a pôr

Então sucedeu a vez do coro das mulheres, a que João Liberto contrapunha.
                 Nos lemes há sal e prata
                 Nos campos lume pedra e pó
                 Mas sei que o tempo trata
                 Mui pior quem canta só

E João Liberto, bisando por seu turno:
                 Com o tempo qu’inda temos
                 Bem podias um favor
E as mulheres:
                 Malha e sega humilde
                 Vira a leiva no sopé
                 Cresta  mel colhe vide
                 Que serás como quem é

Ao que se segue novo bisado de João Liberto:
                 Com o tempo qu’inda temos
                 Bem podias um favor

Dando o coro feminino por resposta:
                 Cresce a flor amainada
                 No pousio ou seara fútil
                 Mas se não for regada
                 Fica pequena e inútil

Ao que todos, finalizando em conjunto e uníssono, numa série de repetições:
                 Inda mal nos conhecemos
                 Já me aparto com dor
                 Inda mal nos conhecemos
                 Já me aparto com dor

Consequentes à representação vieram as palmas. Cada um aplaudia o seu vizinho pelo desempenho. Umas palmas de mãos secas e duras, curtidas a calos e frialdades... Palmas que pareciam marteladas. Marteladas reivindicativas (de justiça).
Em nossas mentes o espaço e o tempo deixaram de ter significado. Somos uma ideia longínqua, talvez. Somos o tempo que não tem limite. Somos o espaço que não tem fim. Morte? Vida? Sonho? Apenas a ânsia cheia de outra voz, de outra cor, de outro paladar, de outra sensação – enfim, de outro nós.
Entretanto, fazia-se dia. Os mais velhos com acenos de cortesia, o baixar submisso das cabeças e as “bô nôtes” da madrugada, iam-se retirando enfadados e dispersos. O sol, dando-se ares de quem sabe muito bem o que tem a fazer, assomava-se risonho e metálico, em seu soslaio de fogo. Os galos, a quem a de festa não tinha agradado tanto como as anteriores noites, deixaram de se fazer ouvir para dar lugar à chilreada do passaredo miúdo, donos das mais frondosas copas, senhores dos palcos das matinas, trombetas da aurora, arautos de um novo dia e sua correspondente labuta.
Abraços, abraços e abraços.
«Voltem! Venham por cá mais vezes! Traze-os Elsa! Traze-os!...» Era a voz coletiva.
Dali, donde estávamos, à paragem da camioneta, eram dez passinhos, se tanto. Arrastámo-nos para lá, mirando compungidos o bico dos sapatos. Juntos, calados, esperámos meia hora e piques, até finalmente ouvirmos e avistarmos a viatura dos transportes públicos. A carreira. E em roda ciciavam-nos quase com religiosidade...
E passava um e dizia:
«Posé, tem que ser... Tem que ser.»
E passava outro, e repetia:
«Tem que ser... Tem que ser, não é?»
A nossa vontade era ficar. Ficar ali. Não levantar pé, não arredar enquanto durássemos. E gente dura, atura... Só que eles ao passar, lembravam:
«Tem que ser. Tem que ser!...»
Depois, quando a transportadora se aprestava para partir, aproximou-se a Lárinda, com as mãos a contorcer e enrodilhar o avental florido e largo.
«Elsa!! Elsa! Sabes quem vem amanhã? Sim!... Amanhã?!»
«Não, ti’ Lárinda, não sei.»
«É o Manel, filha. É o Manel!...»
  «Ah, sim!...» Exclamou Elsa, cabisbaixa. «Ele agora vem. Volta!? Deixou-nos quando precisávamos de todos. Quando precisávamos dele! E agora vem?!... Está acabado ti’ Lárinda!... Está acabado! Já não é dos nossos, nem dos deles...»

             É tão triste percebê-lo, quanto necessário; mas se deveras queremos que um reino novo nasça, então não podemos construí-lo assente nas cisões do passado... E Elsa, com uma só frase, com um só dito, embora que de forma definitiva, decepara toda a magia da noite! Porque será que até nas mentes mais puras das nossas gentes os sentimentos se transformam em ressentimentos? Será a isso que se chama fado? O fado do ganhão?... Quando um povo é genuíno até no sofrer e desamor demonstra a sua diferença. 

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