A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

segunda-feira, março 26, 2007

PRESSÁGIO


Ao contrário daquilo que pretendo fazer-vos crer
Nem tudo em mim é pura e singela transparência
Também tenho segredos alguns inconfessáveis
Difíceis de dizer, de calar, de escrever, de expelir
De deixar esquecidos numa qualquer rua, esquina
De grafitar nas paredes de alguma casa em ruínas
De abandonar em banco de jardim ou gare ferroviária
De acondicionar entre os livros da biblioteca pública
De encaixotar no sótão com demais trastes e bibelôs
De meter na gaveta das trivialidades preciosas
Junto aos cromos da bola, aos porta-chaves, fotografias
Calendários pornográficos, bilhetes de teatro ou concertos
Recortes de fait-divers, catálogos de exposição, clipes
Botões invulgares, relógios avariados e colchetes ímpares,
Embora me tenha esforçado capciosa e exaustivamente
Rasteirando-me amiúde ou tentando desmascarar-me
Pra nada permitir oculto de mim e de meus semelhantes.


Mas ontem à noite, ao deitar-me, tinha uma aranha
Pequena e quase negra sobre a colcha branca da cama
Por cuja pose serena, pacificadora, sem o mínimo temor
Sem qualquer expressão de surpresa parecia aguardar-me
Que não tive coragem de afugentar e muito menos de matar
E a quem fiz com que me subisse prà concha da mão direita
A fim de pô-la num lugar da casa raramente frequentado
Num dos quartos vagos e sem serventia que me sobram.


Foi um momento solene, de sublime suspensão religiosa
E sustida respiração com receio que ao expirar a incomodasse
O ar exalado viesse inquietá-la ou lhe inspirasse a fuga
O susto, o pânico, algo lhe subtraísse a letargia apaziguadora.
Contornei móveis, transpus portas, percorri salas e corredores
Todavia, como se adivinhado tivesse a solidão dos quartos
A prisão de silêncio para que estava disposto a atirá-la
Ei-la num ápice saltando sem que pudesse evitar-lhe o sumiço
Deixando-me estático para que a não pisasse sem ver
A molestasse involuntariamente ou, enfim, a matasse
No precipitado comum dos gestos irreversíveis e fatais.


Adormeci com a porta do quarto entreaberta... Mas demorei
Custou-me adormecer e passei a noite em sobressalto
Sonhando acidentes vários, tempestades, desertos gelados
Catástrofes mais que perfeitas me obrigaram a acordar
E, durante todo o dia de hoje, andei na casa em bicos de pés
À coca, com cuidado e atentando bem ao dar os passos
Compungido e ansioso por reencontrá-la e trazê-la de volta
Depo-la novamente no meu quarto, rogando-lhe perdão...


Sei que vos pode parecer esquisito este clima de segredo
Este suspeitoso ar de mistério e culpa por um ser ínfimo
Insignificante de quatro pares de patas e baba de seda
Não obstante gregos e egípcios em sua teia revejam o destino
E os cristão lhe concedam as tramas e ciladas de satanás
Ou o sustentáculo do conjunto da vida como querem os celtas,
Casa e tabernáculo da Grande Mãe devoradora de fomes e homens
Insaciável poço de vertigem, sofreguidão e imperiosas urgências.

* * *
Sete dias se passaram convém não esquecer, sei-o muito bem
Porém também não desconheço que a culpa não foi minha
Mas da alma que me arrogoou em todos os sentidos possíveis
De júbilo, de alívio, de euforia, de arrebatamento, enfim de tudo
Pois voei de mim desde que a voltei a encontrar, inconfundível
Precisamente ao canto esquerdo do espelho rectangular, de manhã
Na casa de banho quando fui barbear-me, lavar inclusive o rosto,
E ali ficou a olhar-me, vendo-me a ver-me na limpeza diária das faces
Ou a iluminar-me de outra luz para além daquela jorrada da lâmpada
Semeando-me enxadas digitais para softwares de enredo e mistério
Tecendo-me a realidade com diferentes pontos e linhas num morse
De seda cinza onde adivinhar e domesticar frágeis sinas ou futuros
Rumos pendulares, parabólicas intercepções oscilantes entre céus
Reinos da alma fugida, exilada do corpo durante os sonos da noite
Contudo recuperada pela aurora no canto esquerdo do plano reflexo,
Espelho esse que mais tarde abandonou para subir ao tecto
Instalar-se como estrela de oito pontas no vértice superior direito
Exactamente no ângulo feito entre as paredes e o estuque cimeiro.

* *
Agora deixei, é certo, de andar na casa com receio de pisá-la
E a desenvoltura nas lides ganhou aquela lesta espontaneidade
De quem não necessita de se resguardar da terra que habita
Do chão que pisa, da pele que o envolve, do querer que o anima.
No entanto, sempre que saio de casa tenho de confirmar onde fica,
Mal regresso é a primeira coisa que faço, a ver se ainda lá está,
E nunca me deito ou adormeço sem antes lhe ir desejar boas noites.

Pensei que fosse superstição, ritual de incorporar alguém querido
De quem sinto a ausência e me prendeu nessa teia de palavras
Onde germinam e proliferam as essências secretas dos predicados
A alquimia dos verbos que transitam entre os planos semânticos
E faz fluir a eternidade tornando-a una e transversal às gerações.

Supus ser a tecedeira da rede de afectos que me pescou a alma
A cerziu em passagens serenas e assimétricas de emalhar sentidos
Cruzar pontos, atar hífens, justapor ritmos e rimas da paleta sonora
Ou preencher o vazio do cosmos com as linhas que o sustenham
Réplicas do DNA universal comum a todos os elos da espiral da vida,
As ligações que irmanam os seres e espécies da casa na geografia
Interior a que axónios íntimos jamais negaram a sinapse das falas.

Acreditei que fosse o espírito ancestral congeminando as sortes
Os anseios de olhar o céu que nos tornam únicos porque adoramos
Infringimos a lei dos deuses roubando-lhe o fogo de forjar a matéria
E a vontade, moldando sobre a bigorna do tempo os próprios símbolos
Véu de ilusão, ovo de Maya, expressão da prodigiosa criação da beleza
Lídia dotada, efémera Aracne tecelã dos amores dos deuses pelos mortais
Ferida por Atena e sua lançadeira no castigo da ambição demiúrgica,
Qual Anansé que amassou e moldou a farinha dos primeiros homens
Que criou o sol e as estrelas, força realizadora da meditação intuitiva
Primórdio inicial de todos os seres e interioridade preciosa do cosmos.

Porém, nenhuma justificação me satisfez... Nem o seu consentimento
Me foi dado observar, até que subi ao bordo da banheira e observei
De muito perto, tão perto que os seus cinco olhos me fitaram de viés
Me saudaram num ínfimo pestanejar de assentimento pacificador,
Ditaram que no pentágono dos sentidos o núcleo governa o todo
E esse é tido e ordenado pelo soslaio que emite aos quatro cantos
Aos quatro elementos naturais, terra, ar, fogo e água, carne, respiração,
Calor e sangue, cérebro, pensamento, sexo e amor, língua, cultura,
Arte e poema, aliás simples e trôpega cópia do teu olhar na segunda fila
No balcão dos conteúdos escondidos em cifra humana e literária
Metáforas vivas da arca de acácia onde a humanidade guarda o sonho
Que nos sonha, inventando-nos à sua imagem e dela testemunhas.


Indubitavelmente o teu soslaio, magma que te esculpe o sorriso
No rosa cintilante das faces sob os arcos lunares dos cabelos castanhos
Tensos mas tombados como um manto, duplo véu de Vénus
Moldura de enigma e mistério, seda de abrigo para Moura Encantada.

*

Nem tudo em mim é simples e pura transparência como supõem...
E quero fazer crer. Por exemplo, acabei agora de dizer o teu nome
Como presságio de reencontro, e somente tu o saberás ouvir, ler
Reconhecer entre todas as palavras que vagueiam e se espraiam
Na enseada da voz, no delta da fala, à sombra dos oásis do poema.

sábado, março 24, 2007

NA LEITURA DAS FOLHAS


A minha voz atravessa-me do princípio ao fim
Todo, antes de sair derradeira pela boca vulcânica
É lava do fundo, incandescente génese genital
Capaz de converter o múrmur do figo maduro
Silente síntese imediata entre o mel e o leite
Nos teus lábios de gritar sem o estridor da fé
Mas determinada na simbiose da sicomancia.

Grotescos, deveras grotescos, apenas o beijos por dar
Os que não soubemos aconchegar na seda dos lábios.


O SICOFANTA


Que é isso, da voz dos bojudos e redondos cântaros
Quando cheios de água até ao cimo da boca
Rogando pelo poeta, bardo ou aedo sicofanta
E suas palavras que lhe denunciem os figos
O granulado mel entrevisto no imo liquefeito
Húmus, adubo do prazer na transparência
Cristalina profundidade que assusta o olhar
Se em vertigem atirado ao interior de seu ventre?

É a frescura boreal quem melhor contrabandeia
O fruto doce e aveludado sob as folhas escondido
Verdes rugosas e felpudas, ásperas e combatentes
De tuas vestes e mantos de queda de água, na catarata
Com que te resguardas de mim, estorninho gritante.

Devias sabê-lo desde o início, como lei da Lei.

quinta-feira, março 22, 2007

PERCEPÇÃO MOTIVADA


Quantas vezes gritaste o meu nome do alto da ravina
A fim de perceber o eco, e nada te disse em troca?
É disso que falam os vales da minha paisagem interior
Se entre serras te desconheces em vão descobres o corpo
Ou te esqueces das chaves do nosso quarto crescente.

Podia ser hilariante, porém quase óbvio por repetição
Analógico, mas às vezes torna-se absurdo senão trágico
Desenhar teus lábios, cabelos, lóbulos, esguio pescoço
Apenas com a paleta de lápis que me sobram das pupilas.

Disseram-me ontem que amanhã será o segundo dia
De Primavera, e creio, consequentemente, haver algo inaudito
No desaforo, ingrato propósito de espera em cada esquina
De quem apenas quer ver-se surgir da multidão transeunte
Com o jornal debaixo do braço, as compras do hipermercado
Balouçando nos conteúdos de dois sacos de plástico
Como se fossem qualquer de útil e necessário à coreografia,
Qualquer remédio eficaz para matar as íntimas solidões.

Disseram-me isso, importa todavia registar neste momento
Que se me tivessem dito outra coisa eu nunca o teria escrito...
Ou nem sequer a teria ouvido suficientemente claro, para tal.

quarta-feira, março 21, 2007

VONTADES CRISTALINAS


Quando, precisamente ontem, sábado, minha tia materna
Que por sinal é também Rosa de nome e singela de feitio
Me ofertou dentro de uma cesta de hastes de acácia
Trinta e seis laranjas e dois ramos de loureiro florido,
Recomendou que comesse contigo um fruto por dia
Durante trinta dias meia laranja cada, portanto, o faremos
Metade para ti, metade para mim, diariamente em jejum
Como qualquer receita curandeira de mágicas vitaminas
Posto que no trigésimo dia havemos de repartir as restantes,
Três para mim, que guardarei para comer ao lusco-fusco
(Se a noite não se interpuser à tarde de forma derradeira e abrupta)
E quatro para ti, que consumirás conforme melhor entenderes
Sem qualquer imposição de hora, de lugar ou de propósito
Pois a liberdade não se injuria nem oblitera de ponto pronto
Antes se alonga e serpenteia como os regatos de Primavera
Os equinos dorsos de anunciar a bravia languidez das planícies.

Seremos supérfluos que nem o remanso estival dos vergéis
Os dolentes dias adormecidos sob a romãzeira junto à fonte…
Porém, crepitantes no rumorejar cristalino da queda de água
Os salpicos que orvalham de gotículas transparentes a penugem
Os cabelos dos antebraços, o colo até, se te debruças para a bica.

Tens o semblante sonhador de quem aguarda sequiosos cruzados
Solitários viandantes, destinos bamboleantes sobre as selas
Nobres intérpretes da oclusão dos limites secretos da coita.

Há quem diga que o crime que expiras se resume ao olhar
O incêndio avassalador que libertas sobre o gerúndio da estepe
Ressequido que à mínima lucidez arde com ela, alma do estrépito
Nu de rompê-la, aspergindo de faúlhas, de miríades de centelhas
Flamejando imediatas e breves, repentinas ao desejo dos nardos
Como livres lírios que cabriolam o cume de todas as miragens


-- Incluindo as nossas. Uma a uma, gomo a gomo suculento
O sumo escorrendo-nos da boca tumefaciente da procura mútua.

sexta-feira, março 16, 2007

Óculos escuros

É quase verdade andar invariavelmente a angústia
Separada dos corpos que a habitam, a bebem
Crestam(-se) como pequenas gotícolas em volta
Envoltas pelas crisálidas das expectativas
Pois naturalmente cada um quer ser outro
Este ideal de si mesmo que sempre ideal também será.

Ninguém discute tal propósito embora
Muito embora porém como já desconfiais
Hajam alguns doidivanas que se interrogam
A cidade até tem diversos bares que frequentam
Raros fazem mais que isso pela noite fora
Outros perdem-se diariamente nos corredores das escolas
E se depois das aulas dadas alguém os interroga simplesmente
Sobre coisas simples não sabem que responder
Por exemplo "estás bom? Como te chamas? És de cá?"

Então fingem que sim e dão um nome qualquer
Provavelmente desconhecem o efeito da memória
Sobre as angústias comuns há diversas variedades
Convenhamos que algumas bastante profícuas
Exigentes, perfeccionistas, apenas permitem o complexo
O imbricado enredo da confusão e mágoa até às franjas
Incluindo aquelas raras e ralas de ser como redes pesqueiras...

Mas, surpresa das surpresas, ontem me disse uma, afirmou
Enquanto procurava no bolso uma caneta sem tinta
Que o calor do sol está a ficar cada vez mais quente
Porque os homens deixaram de se sentir ofuscados
Não se cuidam em fechar os olhos ou franzir o cenho
Assim, quanto insistentemente o desafiam, o fitam!

quinta-feira, março 15, 2007

Voto de Primavera

Agora a cruz que aqui fica,
Deu-lhe a pen(h)a um desvão…
Se era cardo, já não pica;
Apenas cravo, ainda não!