A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras

A aventura das palavras... das palavras... as palavras... as palavras
São o chão em chamas onde as lavras

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A Gravata do Escriba
(Da mesa de Café, junto à janela)

Sentado no lancil, há cinco mil anos que o escriba ali está
O papiro sobre a prancheta, esta apoiada sobre os joelhos,
Os dedos sujos de tinta; tem ao lado a argila dos conselhos
E as folhas são mais de trinta, dos colhidos que não deu.
Portanto, é sabido, que para qualquer outra esquina que vá
Nada diferente disso fará, e nunca, por isso, alcançará o céu.

Alucinados os que sonham, querendo ou sem querer
Pois deles será o mundo que quiserem, se o quiserem ver.

Perco-me subitamente das visões próximas
Imediata é outra vez a outra cidade
E numa outra rua outra rapariga passa.

Que grande vantagem me assiste poder recordá-la
Quando afinal é a primeira vez que comigo se cruza
E nem parecida é com quantas outras me cruzei...
Mesmo aquelas que me puseram as bainhas da alma
À mostra, os alinhavos de querer e o seu avesso.
Sei de fonte segura que nunca antes a vi nem contactei
No entanto, recordo-a quando passa por mim
O olhar esquecido do presente, os gestos soltos
O andar desobrigado ao caminho, a fronte despida
De murais, faixas e slogans necessários à afirmação do ser.
Dirige-se ao invés do retrógrado para se não prender
Ao que decerto nunca foi e sabe todas as falácias das fotos
Onde jamais figurou como manequim cadenciado.
Escolhe das montras o espelhado reflexo da decoração
E não a ansiada posse da peça avulsa que se oferece.
Tem o destino traçado mas considera que esse destino
Se quer ser o destino dela, então também ele tem que fazer
Qualquer coisa definitiva e derradeira para que ela o assuma
Lhe seja fiel, a convença, se disponha a protagonizá-lo.
Ninguém lucra com o facto de ela por ali ter passado
Mas ao menos escrevem-se alguns versos, sinais pontuados
Placas informativas, correcções ao trânsito vulgar das vírgulas.

Sei que nunca a vi antes porque reconheço a falta que me fez
O significado ausente que de repente a sua realidade detonou,
O como foi possível nunca tal nos ter acontecido, se mês
A mês, dia a dia, ano a ano, da esquina onde agora estou
A tenho procurado com eléctrico fulgor enlouquecido!

Talvez não tenha procurado bem... Se calhar, distraído
Com as demais que ali passaram, ou outro motivo qualquer
Não a vira a ela mas, em seu lugar, apenas outra mulher...
Até pode ter sido, que as montras ali paradas, a olharam
E em si mesmas se viram, que ela nem as mirara sequer.
Porque ela ao passar, bem vincara a pegada da passagem
Vincando bem que o real só é real, se também for miragem!

Ia dizendo, que ao menos escrevem-se versos... Mal menor
À luz de quem passa se da passada ao final passado é,
Que quando se passa para ficar, é ficando que muda a cor
O matiz, a paleta, o sabor das torradas, o aroma do café
Seja durante a tarde, durante a noite ou seja pela manhã,
Que a alma quando arde, nos andará sempre enrolada
Ao pescoço, assim, bem dobrada, como um cachecol de lã.

1 comentário:

Anónimo disse...

Acaso haverá por aí alguém que se lembre do poema Acaso, de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa? Dava jeito lê-lo antes ou depois destes...